Consórcio europeu está à procura dos venenos que curam

A partir do veneno de 500 animais, o projecto europeu Venomics quer criar um banco de 20.000 moléculas para obter fármacos. Uma empresa portuguesa participa neste consórcio, cujos primeiros resultados são apresentados nesta terça-feira em Lisboa.

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Aranha DR
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A recolha do veneno de um escorpião DR
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Luís Ferreira, investigador e empresário, fundador da NZYTech Sandra Ribeiro

Um veneno é um cocktail de pequenas moléculas rápidas a actuar e específicas naquilo que fazem. O resultado, muitas vezes, é letal. Paradoxalmente, estas mesmas características podem tornar algumas destas moléculas em fármacos potentes. É isso que o consórcio europeu Venomics está à procura. Oito instituições de cinco países, incluindo uma empresa portuguesa, querem criar um banco de 20.000 moléculas existentes no veneno de 500 animais para encontrar químicos que possam ajudar a tratar doenças como o cancro ou a diabetes. Nesta terça-feira, o consórcio faz o ponto de situação em Lisboa, quando está a meio do projecto de quatro anos, com financiamento europeu e conclusão prevista no final de 2015.

O ornitorrinco, a vespa-asiática ou o escorpião-ibérico são apenas três dos 173.000 animais venenosos que se conhecem no mundo. Se o veneno de cada um deles for composto por 200 a 250 moléculas venenosas diferentes — as toxinas —, então a estimativa do Venomics é que existam na natureza 40 milhões destas moléculas. É um manancial enorme de substâncias que podem ser estudadas, algumas poderão ser importantes para a medicina.

Estas pequenas moléculas são péptidos e pertencem à mesma classe de substâncias das proteínas. Tanto os péptidos como as proteínas são formados por unidades de aminoácidos, mas os péptidos são mais pequenos. Estas toxinas que compõem os venenos têm entre 20 a 200 aminoácidos. A forma final destas moléculas não é um colar linear de aminoácidos, mas uma estrutura tridimensional, que, consoante a função de cada péptido, permite as mais variadas funções: paralisar os músculos, bloquear funções nervosas, causar dor, diminuir a tensão arterial, desfazer os tecidos ou causar hemorragias.

Com um cocktail desta envergadura os animais venenosos conseguem proteger-se e, principalmente, atacar. As cerca de duas centenas de toxinas presentes em cada veneno produzem uma combinação de efeitos que torna difícil uma resposta da vítima, e nos faz querer ficar distantes até da mais plácida das abelhas.

“Cada um destes venenos tem uma actividade muito específica. Em termos evolutivos, vêm de moléculas dos próprios organismos com pequenas modificações que se transformam em venenos”, diz ao PÚBLICO Luís Ferreira, fundador juntamente com Carlos Fontes, da empresa portuguesa NZYTech, que integra o consórcio da Venomics, liderado pela empresa francesa VenomeTech.

“Em conjunto, estes venenos são muito tóxicos e letais. Mas quando são isolados um a um, alguns podem ser medicamentos”, diz o investigador que é professor na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa. Há já alguns exemplos destes: o captopril é um composto desenvolvido a partir de uma molécula descoberta no veneno da Bothrops jararaca, uma serpente que vive no Brasil e é conhecida como jararaca, cuja mordida pode ser fatal.

Um dos efeitos do veneno da jararaca é baixar a tensão arterial da vítima até um nível mortal. Na década de 1970, identificou-se a molécula que causa este efeito e hoje o captopril, usado para controlar a hipertensão, é um dos chamados blockbuster — medicamentos cuja venda faz pelo menos mil milhões de dólares por ano.

O Venomics está à espera de encontrar novos compostos que podem ser importantes para a dor, a diabetes, as doenças cardiovasculares ou o cancro. Estes problemas de saúde têm causas intrínsecas — ao contrário das doenças causadas por bactérias ou vírus — e a solução para estes males pode estar no meio da artilharia de compostos que a evolução foi inventando nos venenos destes milhares de animais.

A especificidade destas moléculas é uma mais-valia para a medicina, já que só actuam sobre um determinado substrato e não sobre vários, diminuindo as probabilidades de terem efeitos secundários, uma característica comum dos medicamentos artificiais que são sintetizados pela indústria farmacêutica.

Até agora, estudar estes venenos era um processo complicado e demorado. Muitas vezes, algum efeito de um veneno chamava a atenção aos investigadores, que iam depois à procura da substância que estava na origem de um fenómeno: no caso do veneno da jararaca, o jackpot foi descobrir a molécula responsável pela redução da tensão arterial.

Para isso, era preciso ir buscar muitos animais de uma espécie, dissecá-los para retirar as glândulas que produzem o veneno, estudar este veneno, descobrir o péptido, purificá-lo, investigar a sua estrutura. Entre o início e o fim deste processo, passavam-se vários anos, com apenas uma molécula estudada. Até agora, menos de um milhar de moléculas de veneno foram minimamente analisadas, um fragmento mínimo de tudo o que a natureza tem para oferecer.

A abordagem do Venomics é completamente diferente e vive da tecnologia usada na biologia molecular que foi desenvolvida nos últimos anos. Além da empresa portuguesa e da francesa, o projecto conta ainda com investigadores da Comissão de Energia Atómica, da Universidade do Mediterrâneo e da empresa Vitamib, as três na França, bem como da Universidade de Liège, na Bélgica, da empresa farmacêutica Zealand Pharma, na Dinamarca, e da empresa espanhola Sistemas Genómicos.

“Este é o maior consórcio a nível mundial a estudar venenos”, diz Luís Ferreira. Com estas oito instituições, o consórcio conseguiu reunir o conhecimento e a capacidade tecnológica para acelerar o processo de identificação, análise e descoberta de compostos naturais.

Tal como as proteínas produzidas nas células do nosso corpo, os péptidos dos venenos são fabricados a partir de genes. As células das glândulas de venenos são responsáveis por esta produção. Para cada péptido há um gene — um pedaço de ADN que compõe os cromossomas. Este pedaço de ADN é transcrito para o ARN-mensageiro no núcleo das células, que por sua vez é traduzido na cadeia de aminoácidos que compõe cada péptido.

Recolhidas 120 espécies venenosas
O consórcio começa por recolher o veneno e as glândulas de um animal venenoso. Com o veneno utiliza a técnica de electroforese para separar e isolar os péptidos. Depois, com um espectrómetro de massa de última geração, é possível partir cada péptido e pesar todas as suas partes. Como cada aminoácido tem um número de átomos diferente, o peso de cada um vai ser único. E o espectrómetro é tão preciso que pesa cada aminoácido, conseguindo assim obter a sequência de aminoácidos específica de cada toxina.

Por outro lado, os cientistas identificam as moléculas do ARN-mensageiro produzidas nas glândulas que fabricam o veneno. Como se conhece o “dicionário” que traduz o ARN-mensageiro para os aminoácidos e como já se sabe a sequência de aminoácidos dos péptidos que compõem o veneno, a equipa pode associar as moléculas desse ARN aos péptidos, confirmando assim quais são as toxinas importantes dos venenos.

O passo seguinte é fazer um estudo destes péptidos para se escolher aqueles que têm um interesse potencial a nível farmacológico. Uma toxina pode ser interessante quando pertence a uma classe de moléculas que já têm importância na medicina ou quando é de uma classe completamente nova. Com esta selecção feita, passa-se para a clonagem dos genes. E é aqui que entra a NZYTech, cuja sede é em Lisboa, no Lumiar.

A empresa nasceu em 2008 e vende proteínas enzimáticas que degradam polissacarídeos vegetais como a celulose. Para isso, usa engenharia genética para fabricar genes destas proteínas que são inseridos dentro de plasmídeos — pequenos cromossomas circulares — que depois são introduzidos nas bactérias. Por sua vez, estas bactérias sintetizam as proteínas a partir dos genes que estão nos plasmídeos. “Escravizamos as bactérias que produzem aquilo que queremos”, resume Luís Ferreira. “Temos a capacidade de sintetizar e clonar entre 100 e 800 genes por semana.”

A empresa recebe a informação sobre a sequência de aminoácidos de cada toxina e a partir daqui constrói o gene e põe as bactérias a produzir o péptido. Até agora a equipa esteve a testar este processo, primeiro com péptidos de venenos já conhecidos, para confirmar se a técnica funciona, e depois com novos péptidos descobertos neste projecto. O passo seguinte é a síntese em massa destes péptidos e o teste em diferentes linhas celulares para se tentar descobrir, finalmente, novos fármacos.

Esta nova abordagem traz uma capacidade sem precedentes na identificação de novas substâncias. O projecto, iniciado no final de 2011, conta com 9,1 milhões de euros, incluindo seis milhões que vieram do sétimo programa-quadro da União Europeia para a ciência. Já se recolheram 120 espécies venenosas: aranhas, formigas, escorpiões, vespas, gastrópodes marinhos do género Conus e serpentes. Destas, já foi analisado o ARN-mensageiro das glândulas de veneno de 90 espécies e já foram estudados os péptidos do veneno de 30 espécies. A NZYTech já clonou os genes de 200 toxinas conhecidas e 100 novas toxinas.

“Esperamos obter um banco de 20.000 sequências no final do projecto, que vai representar a maior base de dados de toxinas construída até agora”, diz Nicolas Gilles, líder de uma das duas equipas que integra o consórcio da Comissão de Energia Atómica, num comunicado. Ainda assim, tendo em conta os milhões de moléculas naturais existentes em animais venenosos de todo o mundo, este banco será ainda uma gota de água num mar de possibilidades. Luís Ferreira, gostaria que o projecto continuasse depois de 2015: “Não continuar o projecto seria um desperdício enorme de conhecimento e de capacidades instaladas.”

Notícia corrigida às 19h43 de 24/06/2014: a fotografia do aracnídeo foi divulgada pelo próprio consórcio Venomics e, ao contrário dessa informação, não é de uma tarântula.

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