Como transformar a ciência portuguesa em desígnio nacional?

Cientistas procuram novas formas de tornar a ciência que se faz em Portugal numa causa da sociedade no seu todo. Um país sem ciência é um país sem futuro, afirmam.

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Apesar dos enormes avanços, as instituições portuguesas de investigação científica ainda são frágeis Kacper Pempel/Reuters

Abrir o acesso à formação científica a toda a sociedade portuguesa. Exigir do Estado que aumente o dinheiro que vai para a investigação científica e o ensino da ciência. Reforçar as instituições de investigação e exigir que elas possam gerir de forma desburocratizada os seus orçamentos. Formar cada vez mais e melhores investigadores em todas as áreas do conhecimento, das ciências “duras” às ciências sociais e humanas, da física e da biologia à arquitectura e à história. Acabar de vez com a dicotomia ciência fundamental/ciência aplicada, que não faz sentido. Convencer empresários, políticos e sociedade civil de que a ciência deve ser vista como um desígnio nacional, sem o qual Portugal não poderá sobreviver como país num mundo globalizado.

Estas foram algumas das ideias em debate na segunda-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, durante um encontro que reuniu, ao longo de um dia, várias dezenas de cientistas. Vindos de todas as áreas do conhecimento e de instituições de todo o país e de vários países, os participantes tinham por objectivo discutir um documento intitulado O conhecimento como futuro - uma nova agenda política para a ciência, a tecnologia e o ensino superior em Portugal. Este “manifesto”, que todos podem subscrever, está disponível há umas semanas para apreciação pela comunidade científica e da sociedade civil em http://www.manifesto2015.com/.

Como resumiria no fim do encontro Manuel Heitor, director do Centro de Estudos em Inovação, Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento do Instituto Superior Técnico de Lisboa – e um dos autores do novo manifesto–, o que está em jogo é atingir o “desígnio nacional de viver num país onde há cientistas e onde há ciência”.

Num artigo de opinião no PÚBLICO, em meados de Maio, Manuel Heitor e outra co-autora do documento, Maria Fernanda Rollo (directora do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa), argumentavam ser necessário retomar uma iniciativa semelhante à que, há 25 anos, José Mariano Gago apresentara publicamente com o seu Manifesto para a ciência em Portugal. Para eles, investir em ciência continua a ser investir no futuro de Portugal.

Na reunião de segunda-feira, todos concordaram em dizer que o país tinha dado um enorme e salto, nas últimas décadas, em termos de investigação científica. Por outro lado, ninguém poupou críticas à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a agência responsável pelo financiamento público da ciência portuguesa, pela sua acção “destruidora” dos últimos anos. Isto porque a FCT não apenas pôs em causa a renovação geracional da comunidade científica (através do corte maciço de bolsas de doutoramento), como também a sobrevivência de muitos centros de investigação (através de uma avaliação contestada por grande parte da comunidade científica).

O debate organizou-se em torno de três vertentes: pessoas, instituições e financiamento. A propósito da primeira, falou-se bastante de formação científica. “O conhecimento é um direito inalienável”, declarou no início da jornada António Cunha, reitor da Universidade do Minho, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) e co-autor do novo manifesto. “É preciso tornar esta causa [a da ciência] numa causa da sociedade portuguesa.”

Também se falou muito do mundo empresarial português e do facto de a maioria dos empresários não terem ainda percebido o potencial económico da ciência. “As empresas não percebem para que sirvo”, lançou da assistência a historiadora Maria Antónia Pires de Almeida, do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. E a seguir, respondendo a alguns oradores que tinham defendido, momentos antes, que os cientistas deveriam ser empreendedores para enfrentar as dificuldades de emprego, exclamou: “Vêm-me com o discurso do empreendedorismo. Estive dois anos a tentar criar emprego [para mim própria] e a experimentar a via privada. O meu produto tem de ser feito nas universidades!”

Relativamente às instituições de investigação, António Firmino da Costa, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE, questionou a aposta naquilo que o actual governo qualifica de “excelência”. “No domínio da ciência, a excelência isolada não chega”, declarou. “É possível desenvolver ciência sem instituições científicas ou com instituições fracas? Aposta-se em indivíduos, mas por que é que isso é incompatível com instituições sustentáveis? Os indivíduos trabalham em instituições.” E acrescentou: “A excelência isolada é preciosa, mas o que faz a diferença é ter um tecido denso e abrangente de pessoas de qualidade, empresas, institutos. O surgimento de casos brilhantes depende dessas redes.”

Quanto a formas de financiamento – público, privado, mecenato –, foram expressas múltiplas opiniões. Mas no fim, Manuel Heitor disse algo que não parece deixar muita margem para dúvidas: “Em qualquer parte do mundo, a questão só se resolve com financiamento público. As novas formas falharam. E penso que a questão não se resolve se não nos mobilizarmos para exigir o seu aumento.” 
 

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