Como os heróis anónimos dos Descobrimentos abriram caminho à ciência moderna

A exposição 360º Ciência Descoberta é inaugurada esta sexta-feira em Lisboa. Muitas das peças, incluindo réplicas, vieram de Espanha, Itália, Inglaterra, que contam como as viagens oceânicas dos portugueses e espanhóis abriram as mentes.

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Viagem à ciência do tempo dos Descobrimentos

O único manuscrito de Pedro Nunes que sobreviveu até aos dias de hoje, nunca antes mostrado em Portugal; a carta náutica portuguesa mais antiga que se conhece; o primeiro globo terrestre na China – tudo isto, e como as grandes navegações marítimas dos portugueses e espanhóis contribuíram para o aparecimento da ciência moderna no século XVII, encontra-se na exposição 360º Ciência Descoberta. Inaugurada esta sexta-feira às 18h, está aberta ao público a partir de amanhã, sábado, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, até 2 de Junho.

"Trata-se de uma exposição sobre ciência – não sobre os Descobrimentos em geral", esclarece o comissário, Henrique Leitão, historiador de ciência, no início do catálogo da 360º Ciência Descoberta.

Desfeitas eventuais dúvidas, a narrativa subjacente à exposição é a de como as grandes viagens de exploração do planeta que portugueses e espanhóis fizeram nos séculos XV e XVI – permitindo que o mundo conhecido deixasse de ser local, resumido à Europa e ao Mediterrâneo, e se estendesse a toda a Terra – influenciaram a ciência. E essa abertura geográfica, essa mudança de uma escala local para uma global, alargando-se aos 360º do horizonte, começou por se manifestar nas cartas náuticas.

Henrique Leitão e Joaquim Alves Gaspar, especialista em História da Cartografia e consultor da exposição, param diante de uma preciosidade enquanto fazem de guias da exposição: a carta náutica portuguesa mais antiga que chegou até aos nossos dias, produzida em cerca de 1471, e que é da Biblioteca Estense Universitária, em Modena, Itália. Da autoria de um anónimo português, representa as costas ocidentais da Europa e de África, desde França até Lagos, no golfo da Guiné. O Mediterrâneo e o Norte da Europa nem aparecem. Ao lado dela, para se notar bem o salto dado em poucas décadas, está uma reprodução de uma carta náutica de 1439, de Gabriel Vallseca: ainda está centrada no Mediterrâneo.

"Pouco mais de 30 anos depois [da carta de Vallseca], a carta náutica portuguesa não inclui o Mediterrâneo e o que interessa é o Atlântico. São milhares de quilómetros. Esta carta documenta uma mudança extraordinária", sublinha Henrique Leitão, do pólo de Lisboa do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT). "Foi fundamental para apoiar ou documentar a exploração portuguesa ao longo da costa de África. Armando Cortesão [historiador português] conjecturou a data da carta porque os portugueses chegaram a Lagos em 1471", acrescenta Joaquim Alves Gaspar, também do CIUHCT.

Além dessa mudança de perspectiva do Mediterrâneo para o Atlântico, a carta portuguesa tem a particularidade de estar escrita ao longo da costa mas do lado terrestre, o que sugere que o lado de fora da linha costeira ficou desimpedido para ser utilizado na navegação. Esse é outro aspecto que a distingue da carta de Vallseca, bastante ilustrada.

A visão medieval do mundo está bem presente no modelo cosmográfico de Ptolomeu, do século II d.C., que foi conhecido na Europa principalmente no século XV – e é assim que esse mundo fechado pode ver-se num atlas de Ptolomeu manuscrito em 1466 por Francesco d'Antonio del Chierico, que também veio da Biblioteca Estense Universitária. África era uma massa de terra intransponível entre o Atlântico e o Índico e este era um mar fechado, como se observa em duas páginas abertas, cheias de iluminuras azuis. "Uma beleza", comenta Henrique Leitão.

Mas essa Terra que desde a Antiguidade se sabia ser uma esfera era altamente conceptualizada e abstracta. Os 360º dos círculos da Terra eram entidades mentais porque o globo terrestre não tinha sido realmente cruzado. "Tudo isso mudou drasticamente com as viagens marítimas do século XV", refere-se no catálogo da exposição.

Se na Europa se sabia que a Terra era redonda, na China não era assim. Por isso, o primeiro globo na China, feito por dois padres jesuítas, o português Manuel Dias e o siciliano Nicolò Longobardo, por volta de 1623, e que incorporou informação cartográfica portuguesa, assume particular relevância.

"Para fazer um globo não era preciso um génio. Mas a China não sabia que a Terra era esférica e essa é a primeira representação esférica da Terra", conta Henrique Leitão. "Se só contarmos a história dos génios, tudo isto se perde. A história da ciência tem muito mais."

É também uma história feita de heróis anónimos, ainda que nela também pontuem nomes bem conhecidos, como o matemático Pedro Nunes ou o médico Garcia de Orta. E é esse anonimato que também narra o globo da China que agora veio da British Library, em Londres, para a exposição. "Os cartógrafos, os médicos, os marinheiros, os pilotos, todas estas pessoas eram participantes no esforço comum de gerar conhecimento", refere o historiador.

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