Cientistas preparam cimeira internacional sobre nova técnica de manipulação do ADN

A iniciativa parte dos EUA e pretende criar um fórum global e aberto à sociedade para discutir as implicações, éticas e outras, da eventual utilização da técnica no ser humano.

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A nova técnica altera o ADN no local escolhido através de uma operação de "corta e cola" molecular DR

A Academia Nacional de Ciências (NAS) e a Academia Nacional de Medicina (NAM) dos Estados Unidos acabam de anunciar a sua intenção de elaborar rapidamente recomendações sobre o uso de uma nova tecnologia de manipulação do genoma que poderia um dia permitir a geração de bebés “feitos à medida”.

Esta iniciativa vem na sequência do anúncio, feito por cientistas chineses em Abril, de que tinham aplicado a nova técnica, designada por CRISPR-Cas9, à modificação do ADN de embriões humanos. Mais precisamente, tinham “editado” um gene, chamado HBB, cujas mutações provocam uma doença do sangue, a beta-talassemia, potencialmente mortal.

Os embriões utilizados por esses cientistas não eram viáveis e nunca teriam dado origem a uma criança. Mas mesmo assim, a revelação desencadeou um grande debate na comunidade científica – e provocou a expressão de muitos receios, por parte de uma série de especialistas, quanto às possíveis consequências, não só médicas, como também éticas e sociais, da utilização da dita técnica de “edição” do genoma no ser humano.

Os vários especialistas justificam essa preocupação pelo facto de que este tipo de manipulação genética não diria respeito apenas ao organismo cujos genes seriam alterados, mas a toda a sua descendência por aí em diante. Trata-se, por outras palavras, de uma manipulação genética da linha germinal, muito mais radical do que se costuma chamar de “terapia genética” e em que o alvo da manipulação genética são células do corpo de uma única pessoa com o objectivo de tratar ou curar uma doença.

Os receios também surgem porque nos EUA, embora o financiamento público da experimentação com embriões humanos esteja proibido, vários governos estaduais permitem a sua realização com fundos privados. Já em Portugal, a Lei nº 32/2006 de 26 de Julho sobre procriação medicamente assistida permite a experimentação com embriões humanos para fins de investigação médica, mas os projectos científicos têm de ser aprovados caso a caso pela autoridade competente e a sua potencial utilidade terapêutica tem de ser indiscutível.

Seja como for, dado que a nova técnica é, ao contrário de outras, bastante fácil de pôr em prática, existe o receio de que ela possa vir a ser aplicada por qualquer biólogo amador, por assim dizer “na sua garagem”, para gerar bebés com atributos físicos e/ou mentais desejáveis. Um cenário de tipo Gattaca que, apesar de ser por enquanto extremamente remoto (a técnica não funciona bem), não deixa de inquietar muita gente.

Segundo uma notícia publicada no início desta semana no site da revista Nature, as duas academias norte-americanas tencionam organizar, já no próximo Outono, uma cimeira internacional que inclua cientistas, especialistas de bioética, grupos de doentes e outros grupos da sociedade para abordar todas estas questões.

E segundo a agência de notícias Reuters, a NAS – entidade honorária criada pelo Congresso norte-americano em 1863 que realiza estudos para o governo federal – também decidiu nomear um comité internacional e multidisciplinar que irá estudar as bases científicas, bem como as implicações éticas, legais e sociais, da manipulação genética da linha germinal em humanos. “Já liderámos no passado a reflexão sobre áreas científicas emergentes e controversas, tais como a investigação com células estaminais embrionárias e a clonagem humanas”, declararam em comunicado conjunto Ralph Cicerone, presidente da NAS, e Victor Dzau, presidente da NAM. “Estamos preparados para trabalhar com as comunidades científica e médica de forma a conseguirmos perceber totalmente a edição do genoma humano e as suas implicações.”

Todavia, a aceitabilidade deste tipo de manipulação genética para fins terapêuticos não parece estar em causa – desde que seja segura para o futuro bebé e que permita tratar doenças graves para as quais não existe outra opção terapêutica. Esta visão, bastante consensual, está patente na edição de Maio da revista Nature Biotecnology, nos comentários de 26 especialistas de bioética, direito, genética, medicina (dos EUA à China, passando pela Europa) acerca de vários aspectos das implicações da técnica CRISPR-Cas9.

Pergunta aquela revista: “Em que casos consideraria a engenharia genética da linha germinal humana eticamente aceitável?” Resposta de Robin Lovell-Badge, reputado geneticista britânico: “Quem recusaria tornar os seus filhos resistentes ao VIH ou ao ébola? (…) Ninguém considera antiético o facto de os pais estarem sempre à procura de formas de conferir vantagens de vida aos seus filhos. E mandar os filhos para uma boa escola também pode ter efeitos transgeracionais.”

Mas não há unanimidade: “Pessoalmente, estou muito preocupada com a ideia de se vir a modificar a linha germinal nos seres humanos”, comenta por seu lado uma das co-inventoras da nova técnica, a francesa Emmanuelle Charpentier (que acha contudo que a questão da segurança é a mais premente). E cita a Convenção Europeia de Protecção dos Direitos Humanos e da Dignidade do Ser Humano, que estipula que apenas podem ser feitas manipulações genéticas terapêuticas “que não introduzam qualquer alteração no genoma de qualquer descendente”.

 
 

   

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