Ciências sociais lançadas ao inferno

Investigadores da área das ciências sociais e humanas diagnosticam catástrofe, depois de 20 anos de evolução.

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Rui Gaudêncio

Talvez tenha sido Diogo Ramada Curto, investigador integrado no Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa, a lançar o mote num artigo publicado nas páginas do PÚBLICO: “Este ano, o Inverno chegou à investigação das humanidades e ciências sociais com a força de uma hecatombe.” Hecatombe é palavra usada por cientistas sociais de norte a sul do país.

Olham todos para trás, para ganhar perspectiva. Durante a ditadura, o país atrasou-se nas ciências em geral e nas ciências sociais e humanas em particular, porque essas “eram objecto de suspeita”, lembra, por exemplo, Boaventura Sousa Santos, do Centro de Estudos Socias da Universidade de Coimbra. Após o 25 de Abril de 1974, seguindo uma tendência global, foram assumindo um lugar de pleno direito ao lado das outras. O avanço dos últimos 20 anos parece-lhe “extraordinário”. Agora, diz, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) e a sua tutela do Ministério da Educação e Ciência “estão a destruir o trabalho feito”.

Não se pode dizer que tenham sido apanhados de surpresa. Logo no início, a nova gestão da FCT anunciou que a área das ciências sociais e humanas estava “sobrefinanciada”. E Moisés Martins, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, já se perguntava, em público, se seria possível o país aprovar, como fez durante o Estado Novo, “a exclusão das ditas ciências moles, em nome de uma ideologia utilitarista, produtivista e mercantilista”.

Esta frase, há muito escrita, nunca fez tanto sentido para o seu autor, o mesmo Moisés Martins: “Verdadeiramente assombradas por uma força que nunca interrogam nem desejam ver interrogada, as políticas do país elevam ao céu as ciências operativas e produtivistas e lançam no inferno as ciências sociais, como se em Portugal ‘o crescimento económico e o desenvolvimento integrado e sustentável’ precisassem apenas das primeiras, podendo dispensar as segundas como um luxo desnecessário e dispendioso de mais para um país em crise.”

Encolheu o orçamento das universidades. Encolheu o número de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento nas ciências sociais nos últimos anos (no concurso relativo a 2013, cujos resultados foram divulgados na semana passada, tiveram à volta de 30% das bolsas de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas, o que equivale, respectivamente, a 90 e 66 bolsas). Já se prevê que encolha o orçamento dos centros de investigação, que ao longo deste ano estão em processo de avaliação.

A primeira consequência, óbvia, destes cortes? “Há muitos jovens excelentes, que deviam fazer doutoramento ou pós-doutoramento, seguir carreira académica, que não podem”, indica Maria Johanna Schouten, do Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior. “Sem bolsa, desistem ou vão para fora.”

Sofia Aboim, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, observa esse êxodo: “As universidades não têm capacidade de contratar. Os investigadores não podem contar com o sistema, que se tem pautado pela precarização, pela falta de lugares no quadro. Muitos contratos acabaram, muitas bolsas acabaram. Ainda não se nota, mas já há um número significativo de pessoas que saíram e isso reduz a qualidade do trabalho que se faz.”

“O mundo académico é internacional”, resume Maria Johanna Schouten. “As fronteiras em si não são importantes.” Acredita, mesmo assim, que o país ficará triste quando perceber o alcance do movimento de saídas do território nacional de gente em quem muito investiu.

O orçamento minguado deixa sem apoio financeiro projectos avaliados pela FCT com excelente ou mesmo fora de série. Moisés Martins dá um exemplo: em 2012, o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, o único a que a FCT atribuíra a nota de excelente, apresentou 15 projectos: dois foram avaliados com excelente e dois como fora de série, só um destes últimos foi financiado. É um gasto de energia que, em seu entender, deveria poder ser reaproveitado no ano seguinte.

Não é só o corte no financiamento público. Outros aspectos contribuem para esta sensação de achaque.

A comunidade torceu o nariz à remodelação do conselho científico das Ciências Sociais e das Humanidades, no qual entrou a mulher do ministro da tutela. “Parte daquelas pessoas não são os melhores cientistas do país”, diz Moisés Martins, ressalvando que “as ciências da comunicação têm representante adequado”. Vieram à tona, escreveu Diogo Ramada Curto, no já citado artigo, “possíveis escolhas arbitrárias, algumas distorções parciais e, sobretudo, uma enorme incapacidade para fazer reconhecer como legítimos critérios de avaliação que não são uniformes”.

Na busca de uma lógica, um factor emerge. Boaventura Sousa Santos chama-lhe “concepção mercantilista da ciência”. Que quer isto dizer? “A FCT segue o modelo neoliberal das ciências, um modelo que procura ligar a investigação e a universidade às necessidades do mercado. É uma forma míope de ver a ciência.”

Não é uma originalidade portuguesa. O investigador passa boa parte do ano nos EUA e por lá confronta-se com o mesmo. “Por que isto é mais grave em Portugal?”, pergunta. “Por que não temos uma base forte da qual partir. Estávamos ainda a construí-la. Houve um trabalho notável, mas não estava ainda consolidado.”                                   

A orientação está longe de ser inócua. “Muita da melhor ciência que se faz não tem aplicação imediata; a ciência é lenta, a investigação pode ser importante para acumular conhecimento”, corrobora Sofia Aboim. “Há o perigo de as pessoas fazerem o que tem financiamento e não o que é relevante.”

Onde se vai estudar língua e literatura portuguesa?, pergunta Boaventura Sousa Santos. Como se vai conhecer a realidade portuguesa para lá dos negócios, da inovação tecnológica, do desenvolvimento de transportes? “Portugal é um país cada vez mais invisível para si próprio”, responde. As ciências sociais e humanas desempenham um papel. E o catedrático de Coimbra explica-o assim: “Através delas pensamos o mundo cada vez mais interdependente e competitivo. São importantes para saber qual o nosso lugar, conhecer o passado, confiar no futuro.”

Na mesma linha, outra queixa se levanta: a quase redução dos critérios de avaliação do grau de internacionalização à publicação de artigos em revistas com factor de impacto, uma medida que reflecte o número médio de citações de artigos científicos num dado período. “Não é um critério neutro”, sublinha Sofia Aboim. “Dá uma quantificação da ciência, falta uma medida de qualidade.”

“Procurou-se importar o modelo de avaliação da física”, explica Fernando Diogo, do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais da Universidade dos Açores. E não é igual. “Nós fazemos artigos de 20 páginas com um autor, na física fazem artigos de três páginas com 20 autores.”

Luís Fernandes, do Centro de Comportamento Desviante da Universidade do Porto, tem levantado a voz contra os critérios bibliométricos. “Esta espécie de obsessão pelo paper científico obriga a publicar mesmo quando é ainda provável que se tenha pouco para dizer”, escreveu no Diário de Notícias.

Tudo isto lhe parece contraproducente. “Há produtos que podem ser apresentados mais rapidamente do que outros”, comenta com o PÚBLICO. “Se me pressionam, se o critério for o da publicação, se eu for um chico-esperto, opto por objectos de investigação que facilmente se convertem em artigos: faço ‘fast science’”.

O modo aprofundado de fazer ciência exige tempo, trabalho árduo. O especialista em comportamento desviante cita, a este propósito, uma entrevista dada por Peter Higgs, o prémio Nobel da Física de 2013, ao jornal britânico The Guardian, na qual este declara que hoje não teria lugar na academia: “Não creio que fosse considerado suficientemente produtivo.”

Sente outro drama. Uma mera síntese bibliográfica, refere, pode “transformar-se num trabalho insano”. Hoje, há muito “lixo”. E essa “poluição” gera um “efeito de máscara”. “É muito difícil distinguir o que é interessante do que não interessa. Muita informação é redundante. Diz-se o que já está dito e redito.”

Por força desta tendência, que já considera uma espécie de “patologia”, Luís Fernandes julga que “os investigadores são hoje menos cultos”: “Com tanto que andamos todos a escrever, não há tempo para ler o que escrevem os outros. Como não há tempo para ler, gera-se um empobrecimento da cultura científica. A ciência precisa de muitas horas de silêncio mergulhado em livros.”

Não conta publicar em qualquer sítio. Dois índices pesam mais do que outros: o Institute for Scientific Information (ISI) e o Scopus. Predominam revistas do Canadá, dos Estados Unidos e do Reino Unido. “As ciências sociais trabalham em função destas agências de rating, critica Moisés Martins.

“Os editores internacionais de revistas de língua inglesa não estão muito interessados na realidade local e isso tem consequências na qualidade da investigação que se faz e no conhecimento que temos do país”, lembra Fernando Diogo. A demolição do Bairro do Aleixo, no Porto, exemplifica Luís Fernandes, não lhes desperta interesse. Interessa-lhes algo mais geral, por exemplo, sobre a propagação das doenças infecto-contagiosas.

Para Moisés Martins, o “extermínio do português como língua de comunicação científica, em nome da internacionalização, significa dar cabo de um dos principais recursos que o país tem para a internacionalização: a força da sua língua”. Miriam Tavares, do Centro de Investigação em Artes e Comunicação, da Universidade do Algarve, também não entende por que não usa a FCT o Latindex, que acolhe revistas científicas publicadas em Portugal, Espanha, América Latina.

A hegemonia do inglês não se detecta apenas na publicação de artigos, também em congressos e reuniões. Não vai há muito, Miriam Tavares foi a uma reunião na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, que decorreu em inglês apesar de todos falarem português excepto um, que era francês. “Achei muito estranho, mas acho que as outras pessoas acharam normal”, diz.

Com as torneiras nacionais quase fechadas, os investigadores viram-se para o financiamento exterior. “É preciso ter uma estrutura de suporte para ganhar projectos internacionais de grande complexidade”, enfatiza Boaventura Sousa Santos, que conquistou uma bolsa de 2,4 milhões de euros do Conselho Europeu de Investigação (ERC) para o projecto “ALICE – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”, que envolve investigadores de Portugal, França, Itália, Reino Unido, Bolívia, Brasil, Equador, África do Sul e Índia.

Não podia estar mais de acordo Sofia Aboim, que acaba de ganhar uma bolsa de 2,7 milhões do ERC para o projecto TRANSRIGHTS – Cidadania de género e direitos sexuais na Europa: vidas transgénero numa perspectiva transnacional”, que inclui investigadores de Portugal, França, Reino Unido, Holanda e Suécia. É preciso contar com gestores, contabilistas, informáticos, ir a Bruxelas a entrevistas.

“As instituições científicas estão sujeitas a enorme burocracia, a recorrentes avaliações, o que torna por vezes impossível fazer o nosso trabalho”, critica Boaventura Sousa Santos. Mas o pior mesmo, a avaliar pelo que diz Fernando Diogo, é a escassez de meios. Na Universidade dos Açores, por exemplo, há muito quem dê mais quatro horas de aulas do que o máximo previsto por lei por não haver novas contratações. E dar mais aulas implica, por certo, menos tempo para investigar. Contratar alguém para fazer a mera inserção de dados pode ser o cabo das tormentas, como sabe Ida Lemos, investigadora em psicologia da Universidade do Algarve. Tudo parece incerto, sobretudo o destino dos precários da ciência.
 
 
 
 
 
 

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