Ciências à medida

Apesar da racionalidade democrática, as ciências ditas não exactas, como a sociologia, continuam censuráveis. Vem isto a propósito do artigo censurado de Ricardo Campos, “A Luta Voltou ao Muro”, na revista Análise Social.

“Mais vale prevenir do que remediar”: é uma questão de bom senso. Mas há alguém para quem a previsão é a alma da sua acção: o censor. Por exemplo, prevê que se um texto é escrito, o seu autor tudo fará para ser publicado; que se o livro é publicado, será lido; e que se este livro contém passagens ofensivas, uns poderão ofender e outros ser ofendidos. O censor segue uma lógica eficaz e tão simples como o bom senso: para ele, censurar rima não só com remediar mas também com prevenir. Acontece com todo o tipo de obra, texto escrito, cantado, imagem fixa, animada... As artes criativas sempre foram um alvo de predilecção da censura. Mas o que se passa quando se trata de ciência?

Se um cientista publica dados de que não é o autor, tendo plagiado análises ou resultados ou, mais grave ainda, tendo inventado parte do processo de investigação, não se fala de censura quando o texto em causa é proibido de circular.

O caso da bióloga japonesa Haruko Obokata, ainda em todas as mentes (PÚBLICO, 29.05.2014), apresenta uma versão soft das medidas adoptadas: depois de pedir desculpas, aceitou que fosse retirado o artigo da revista em que fora publicado. Digamos que estamos aqui perante uma caso de autocensura pública. Na maior parte dos casos de plágio ou mistificação, nenhuma prevenção é accionada: o remédio é cortar o membro podre. A justiça pode ser chamada a intervir porque um individuo, ou um grupo, ficou prejudicado.

Um investigador que se debruça sobre a história da censura no antigo regime não se sente em terreno estranho ao ler o notável ensaio comparatista de Robert Darnton, recentemente publicado em francês (De la censure, Gallimard, 2014). Conta, entre três casos, como se censurou a expressão literária na Alemanha do Leste graças a uma máquina burocrática que enredava o poder político ao seu mais alto nível, os censores e os autores, fazendo com que a produção inteira fosse quase totalmente controlada de maneira eficaz, isto é, para a defesa da ortodoxia ideológica.

Nos nossos dias, graças à democracia, a censura já não existe como uma instituição de Estado, mais ou menos visível, que previne ou remedeia em nome da ordem colectiva. Graças à racionalidade democrática, os resultados das ciências ditas exactas são debatíveis, conforme o conceito de ciência enquanto processo crítico e aberto numa sociedade aberta (Karl Popper).

No entanto, apesar da racionalidade democrática, as ciências ditas não exactas, como a sociologia, continuam censuráveis e os seus resultados não debatíveis. Pierre Bourdieu apelidava esta disciplina de “desporto de combate”. O director de um centro de investigação que suspende uma revista científica impressa e pronta a figurar nas montras das livrarias, das bibliotecas e da Internet mundial, por causa de um artigo que trata graffiti sobre a actualidade económica do país, explica que toma uma medida preventiva (PÚBLICO, 08.11.2014). Vem isto a propósito do artigo censurado de Ricardo Campos, “A Luta Voltou ao Muro”, na revista Análise Social, 212.

A censura preventiva, ou censura pré-publicação, existe há séculos: consiste em controlar a produção escrita, ou icónica, de ideias que se julgam atentatórias à heterodoxia. Impedir a uma publicação o acesso à esfera pública chama-se censura proibitiva, ou censura pós-publicação.

Nos nossos dias, a suspensão “preventiva” da publicação de um artigo de sociologia, com a agravante de mostrar imagens, deve-se chamar de censura tout court porque o censor (ou o grupo exercendo essa função) impede o acesso de todos a uma análise invocando razões de ordem alheia à investigação. Quando este decisor justifica que o discurso dos graffiti é transferido para o discurso do autor, intenta um processo de intenção; quando esclarece que o artigo funciona como ilustração, “não passa[ndo] pelo processo de avaliação científica”, atribui às peças analisadas, os graffiti, uma função de discurso ideológico personalizado; enfim, quando qualifica o artigo de “mau gosto e uma ofensa a instituições e pessoas que eu não podia tolerar”, age em nome de um dos pilares da censura do antigo regime, os bons costumes: este “eu” incapaz de “tolerar” mostra até que ponto a actividade científica é submetida a um processo de avaliação subjectiva e de poder discricionário de decisão. Afinal, a medida dita preventiva é uma medida proibitiva.

Todo o censor age em nome de interesses pretensamente superiores aos da coisa censurada. Quem fica censurado é sempre o público. A não ser que o censor queira atrair todas as atenções sobre a sua presa: tanto faz prevenir como proibir. O censurado agradece.

Historiador de ciência da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

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