Ciência Aberta: à vista talvez uma grande oportunidade perdida

Vivemos num tempo em que governos e instituições e avaliações parecem sobretudo valorizar números e percentagens. Poucos se debruçam sobre o seu significado.

Li o dossier Crise na Ciência, de 18 de Julho de 2014, de Teresa Firmino e Samuel Silva. Na entrevista com Miguel Seabra, o presidente da FCT, Teresa Firmino diz: “Essas vozes críticas têm-nos procurado, enquanto as outras que menciona (‘que há investigadores que dizem que nunca tiveram uma avaliação tão boa e justa’) não se têm manifestado publicamente.”

A FCT não é só a principal entidade financiadora do sistema científico em Portugal, mas também, e sobretudo, a única em que todos os investigadores se sentem representados.

Chego a esta hora, como talvez alguns possam saber, das áreas das ciências da saúde e da biologia. Presidi, com um pequeno grupo FCT de investigadores portugueses em 1991, à primeira grande avaliação de propostas de novos centros de investigação com uma instituição externa, o Inserm (o Instituto de Saúde e Investigação Médica em França) numa única área: as ciências da saúde. Era então presidente da FCT Carlos Salema, secretário de Estado da Ciência Sucena Paiva e Philippe Lazar presidente do Inserm.

As propostas foram submetidas em papel, quilos de papel. Um número ainda alto de grupos passou à fase de visitas presenciais por investigadores do Inserm, acompanhados por mim, por funcionário(a)s da FCT responsáveis pela logística das deslocações e alguns investigadores de nacionalidade portuguesa a trabalhar no estrangeiro, conhecedores do tecido nacional de investigação. Não havia blogues, não havia informação instantânea em iPhones ou iPads, e não me lembro se o professor Salema alguma vez apareceu em público a apresentar resultados, seguramente, nunca online para quem no mundo os quisesse ver antes de o processo estar finalizado. Também não havia, que me lembre, em 1991, muito jornalismo científico.

Aquilo que o PÚBLICO caracteriza hoje como “Crise da Ciência”, é, para mim, retirada de uma vida científica activa de bancada ou mesmo de laboratório, o sinal de que a ciência em Portugal passou a ser o que não sei se é na grande maioria dos países europeus: uma ciência viva, como Mariano Gago a imaginou, quando criou o movimento Ciência Viva, ou Maria Manuel Mota, quando criou o movimento Viver a Ciência, ou uma Ciência Aberta, como Mário Soares quando iniciou Presidências Abertas. Uma Ciência Aberta a uma discussão que tradicionalmente em qualquer país com uma história secular de investigação científica se faz exclusivamente entre pares.

Aberta, ou viva, ou a viver-se apaixonadamente, não sabemos o que serão os resultados finais da avaliação a todas as áreas da investigação ainda em curso. Sabemos que os resultados da avaliação de todas as áreas feita em 2007 só foram conhecidos em 2009 e que os diálogos intercalares entre avaliadores e avaliados foram todos feitos internamente, entre pares sem apresentações ou discussões públicas. A FCT garante que os resultados serão conhecidos no princípio de 2015.

Miguel Seabra pareceu julgar que estava a fazer a coisa certa quando, a 27 de Junho, mostrou a todo o país quais eram os resultados da primeira fase de avaliação. E parecia estar. Eu própria (talvez ingenuamente) achei que estava. Mas tal coisa que lhe parecia certa, e poder corrigir a forma impaciente como se tinha comportado no princípio do ano, tornou-se numa espécie de feitiço contra o feiticeiro, quando ao mesmo tempo, na expressão de um amigo investigador, “se pôs a jeito” para a enormidade de críticas que se seguiram a algumas avaliações e resultados apresentados no fim da primeira fase.

A qualidade de retirada dá-me suficiente distância de toda esta agitação e indignação, para haver investigadores responsáveis por propostas que passaram e outras que não passaram à segunda fase, que, por cortesia e desejo de terem a minha opinião, trouxeram ao meu conhecimento os textos das avaliações das suas unidades.

Como seria de esperar, pelos muitos que procuraram jornalistas para expor justamente a sua indignação e muitos que privadamente disseram ao presidente da FCT que esta tinha sido a melhor e mais justa avaliação, teve de haver uma grande variação na qualidade das avaliações– de que eu posso dar testemunho, porque assim tive oportunidade de ver. E isso, acredito, ninguém poderia esperar de uma avaliação preparada pela European Science Foundation (ESF).

Como não se esperava que o contrato da FCT com a ESF tivesse previsto o pagamento de 163 visitas presenciais, isto é, da passagem de 163 unidades à segunda fase. Na sua apresentação intercalar, o presidente da FCT apresentou um quadro indicando que 167 unidades tinham passado à segunda fase.

Saliento as qualidades, porquanto as deficiências foram sobejamente expostas antes do conhecimento das condições do contrato. Na minha opinião a avaliação teve duas grandes qualidades positivas:

1. A “do feitiço contra o feiticeiro”, por Miguel Seabra ter decidido sozinho como nenhum presidente da FCT o fez no passado apresentar resultados parcelares, criando portanto uma oportunidade única de contestação a quem souber ler (que hoje somos quase todos em Portugal).

2. A da ESF ter criado dois espaços, dando a todas as unidades por igual a oportunidade de contestar a primeira fase da avaliação (a que chamou "rebuttal") e ainda argumentar (na audiência prévia que terminou a 11 de Julho, para todos) o caso ou para serem reavaliadas por avaliadores mais apropriados para os tópicos em análise, ou ainda serem visitadas.

Claramente esta não pode ter sido a melhor e mais justa avaliação como alguns fizeram Miguel Seabra crer, porque para eles foi. Mas também não foi como muitos sentem e dizem a pior. Foi talvez, e ainda não se sabe ao certo, a mais desigual.

Curiosamente, tendo dado a aparência de ter sido a mais transparente, a revelação do contrato e a surpreendente coincidência de um número de unidades que passaram à segunda fase ser praticamente idêntico ao presumido nesse mesmo contrato forçam-nos a duvidar da bondade da transparência. Por muito que não queiramos, sentimo-nos ludibriados, mais uma vez, por alguém que nos devia transmitir uma completa confiança nos seus valores e na defesa desses mesmos valores na FCT.

A primeira recomendação que os investigadores Inserm fizeram em 1991 para a área das ciências da saúde é que Lisboa deveria procurar ter um único grande instituto de investigação biomédica. Havia unidades dispersas por toda a cidade.

Mas nesta avaliação o número de unidades de investigação nas ciências da saúde é 13. Vivemos num tempo em que governos e instituições e avaliações parecem sobretudo valorizar números e percentagens. Poucos se debruçam sobre o seu significado.

Será que a pequena percentagem (n=13, 8%) de instituições de ciências da saúde (em contraste com grandes números nas ciências sociais e humanidades, número à volta de 70) significa que, para melhorar e vir a ter maior projecção internacional, tiveram de começar a preocupar-se com a massa crítica e a densidade desde a sua primeira grande avaliação de 1991? Medidas “finas” que, na verdade, só se podem fazer com um conhecimento do terreno simultaneamente mais profundo e mais alargado do que esta avaliação de 322 parcelas, moderna, digital, sem papéis, mas baseada sobretudo em números, em evidência de transferência de tecnologia, sem uma visão global de crescimento e consolidação de que o país tanto precisa.

Eu diria, pública e tristemente, talvez uma grande oportunidade perdida. Esperemos que o feiticeiro ainda possa transformar as visitas presenciais em coisa que nos ajude a nós e não o destrua a ele.

Imunologista e professora emérita da Universidade do Porto

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