Banco de Gorringe: um oásis debaixo de água

Investigadores aplaudem a inclusão da maior montanha submarinha portuguesa na Rede Natura 2000. Mas este é só um primeiro passo. Falta definir um plano de gestão que promova a protecção efectiva deste ecossistema único e ainda pouco conhecido.

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A vida que se encontra no Bango de Gorringe Carlos Suárez/Oceana
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A vida que se encontra no Bango de Gorringe Oceana

Que segredos se escondem por entre as longas folhas de algas castanhas, que ondulam a mais de 50 metros de profundidade no meio do Atlântico? Que espécies estão ainda por descobrir no maior monte submarino português? Quais estarão em risco? Ainda há muitas perguntas sobre o Banco de Gorringe, que se ergue entre a costa Sul de Portugal e a Madeira, a Sudoeste do cabo de São Vicente. O Governo português deu agora um passo que pode conduzir os cientistas às respostas.

Os “valores naturais de elevada relevância” presentes nas montanhas submarinas que se elevam desde o leito marinho, a 5000 metros de profundidade, até 28 metros da tona da água, levaram o Governo a incluí-las na Lista Nacional de Sítios, no final de Julho. O Gorringe torna-se assim a primeira área marinha protegida da Rede Natura 2000 inserida na zona económica exclusiva (ZEE) de Portugal continental.

“O Banco de Gorringe é um ecossistema muito especial”, resume Gonçalo Calado, biólogo e professor na Universidade Lusófona. Por ser o único monte submarino em águas portuguesas cujo cume está a menos de 30 metros da superfície – portanto acessível aos mergulhadores – e por se encontrar relativamente afastado da zona costeira, a 200 quilómetros, o Gorringe abriga uma comunidade biológica com características únicas. “Além disso, como não tem quaisquer entradas de materiais terrestres, as águas são muitíssimo transparentes e toda a produção é exclusivamente de origem marinha”, explica.

Esta singularidade foi já testemunhada em diversas expedições científicas – Gonçalo Calado participou em quatro, uma delas acompanhada pelo PÚBLICO em 2006 – e mergulhos exploratórios. “Encontrámos, a mais de 30 metros, organismos que normalmente só observamos até aos cinco a dez metros de profundidade, e encontrámos sobretudo uma biodiversidade que contrasta com toda a zona oceânica envolvente”, descreve Frederico Almada, biólogo e investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, do ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.

“Impressionante”, prossegue Gonçalo Calado, “é ter florestas de laminárias [as tais algas castanhas] abaixo dos 50 metros. Temos mesmo uma fotografia de uma alga destas a 80 metros, o que implica uma transparência da água incrível, associada a nutrientes na água”.

Segundo a tese de mestrado da bióloga Mónica Albuquerque, dedicada ao estudo do Gorringe, os únicos bancos comparáveis com o português são o Bowie, na costa Oeste do Canadá, e (pela proximidade e pelo contexto geográfico) o Le Danois, em Espanha. Ambos estão já incluídos em áreas marinhas protegidas.

A proposta de classificação como Sítio da Rede Natura 2000, elaborada pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), sistematiza as características que tornam este banco – encontrado em 1875 por Henry Gorringe, comandante do navio norte-americano Gettysburg, numa missão de mapeamento do fundo Atlântico – digno de protecção. Por um lado, a existência de dois tipos de locais que constam da Directiva Habitats: “recifes” e “bancos de areia permanentemente cobertos por água do mar pouco profunda”. Por outro lado, a presença, pelo menos ocasional, de espécies protegidas como o golfinho-roaz (Tursiops truncatus) e as tartarugas comum (Caretta caretta) e verde (Chelonia mydas). “É provável que as espécies utilizem a zona de água pouco profunda para se alimentarem e utilizem o banco submarino como ponto de passagem nas suas rotas de migração.”

Também foram já ali avistadas espécies protegidas pela Directiva Aves, como a andorinha-do-mar-árctica (Sterna paradisea) e o roque-de-castro (Oceanodrama castro).

Mergulhando no azul, encontram-se verdadeiros tesouros naturais, provas do valor ecológico e científico dos dois montes que compõem o banco – o Gettysburg (cujo topo está aos 28 metros) e o Ormonde (34-46 metros). No ano passado, por exemplo, foi ali descoberta uma nova espécie de esponja cristal (fonte muito importante de silício, um dos nutrientes básicos para os oceanos), que vive também nos desfiladeiros marinhos da Córsega e em montanhas do Mar de Alborán, entre os 350 e os 500 metros de profundidade. Em 2000, um grupo liderado pela investigadora Madalena Humanes, da Faculdade de Ciências da Universidade Lisboa, descobriu que uma esponja (Erylus discophorus) encontrada na Nova Zelândia e descrita em 1862 por Oscar Smith, tem propriedades que actuam contra o vírus da sida – e a espécie existe igualmente no Gorringe.

À procura dos segredos
As primeiras campanhas oceanográficas no Gorringe foram conduzidas pelo Príncipe Alberto do Mónaco, no final do século XIX, com o recurso a dragas para recolher amostras de biodiversidade. Desde então houve diversas expedições – e foram melhoradas as técnicas de recolha e análise – para desvendar os segredos desta enorme estrutura vulcânica, que terá sido terra firme há 18 mil anos, tendo ficado submersa há 14 mil, com o fim da última grande glaciação. Os cientistas acreditam que o banco pode ter funcionado como uma “estação intermédia”, uma espécie de estação de serviço entre o continente e os Açores, que permitiu a dispersão das espécies. Mas os estudos que poderiam comprová-lo ainda não chegaram a conclusões definitivas.

Até ao momento foram identificadas 862 espécies no Gorringe mas ainda há muitas por estudar. Destas, 350 foram descobertas em missões conduzidas pela Oceana, uma organização não-governamental dedicada à protecção e investigação dos oceanos. Em 2011 e 2012, a Oceana mergulhou com o seu veículo operado remotamente (ROV, na sigla em inglês), um robô submarino capaz de ir até aos 3000 metros de profundidade, e reportou pela primeira vez a existência no Gorringe de campos de maërl (como a Lithothamnion corallioides), termo bretão para fundos cobertos por algas calcárias, importantes para a conservação pelo seu papel na correcção da acidez do solo e na purificação da água.

Na sequência deste achado, a organização reforçou o alerta para a "extrema importância" da protecção do banco. Por isso, a notícia da inclusão do Gorringe na Rede Natura 2000 foi recebida com aplausos. "Estas acções incentivam-nos a continuar a investigar os fundos marinhos de grande profundidade com o objectivo de identificar os locais que devem ser protegidos", refere num comunicado o director-executivo da Oceana na Europa, Lasse Gustavsson.

Depois deste "primeiro passo", falta saber que medidas ficarão definidas no plano de gestão (terá de ficar pronto dentro de seis anos) e como serão aplicadas, ressalva Gonçalo Calado, para quem a classificação "deixa novos desafios na aplicação da Directiva Habitats ao meio marinho".

A proposta do ICNF sugere medidas que minimizem a "perturbação, dano, destruição ou remoção de organismos marinhos e/ou partes do habitat", impeçam o despejo de substâncias nocivas no local, regulamentem a pesca recreativa e comercial, garantindo o "bom estado ambiental do sítio", condicionem a passagem de navios em trânsito e regulamentem o turismo subaquático. É também recomendada a adopção de medidas que permitam, incentivem e apoiem a investigação científica.

O ICNF refere que "a actividade humana com maior impacto no Banco de Gorringe é a pesca, tanto pela extracção de recursos, como pela poluição causada, sobretudo lixo marinho e ruído”. Segundo Mónica Albuquerque, da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental, a espécie mais pescada no Gorringe é o congro, seguido do tubarão-azul, tubarão-anequim, espadarte, moreia e atum-patudo. Mas a quantidade capturada tem diminuído (excepto no que respeita ao congro): em 2010 foram pescadas 225.5816 toneladas de peixe, número que baixou para 75.076 toneladas em 2011 e para menos de uma tonelada em 2012 – embora os dados possam pecar por defeito, uma vez que dizem respeito apenas à frota de origem portuguesa.

"Eu diria que uma ameaça tão grande como a pesca é o nosso desconhecimento acerca da dinâmica daquelas comunidades e dos factores responsáveis por eventuais alterações", sublinha Frederico Almada. O biólogo nota, por exemplo, que em cada novo mergulho nos cumes do Ormonde e do Gettysburg encontrou "diferenças evidentes" na cobertura de algas e nalgumas espécies de peixes não comerciais", em comparação com mergulhos anteriores.

O biólogo defende a necessidade de realizar mais estudos e de aprofundar as pistas já recolhidas. "Num futuro ideal, em que tivéssemos estações de monitorização sistemáticas e permanentes ao longo da costa portuguesa, o Gorringe seria um óptimo candidato, caso existam meios para o fazer", sugere.

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