As suas bactérias dizem-lhe o que querem do frigorífico?

Há coisas inacreditáveis que são mesmo verdade e outras que parecem óbvias, mas que não resistem a uma análise crítica. Os microorganismos no nosso corpo ajudam-nos a fazer muitas coisas, mas também são capazes de nos manipular. São as bactérias que mandam? A sério?

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JOHN MACDOUGALL/AFP

Muitas vezes diz-se que temos no nosso corpo dez vezes mais células de bactérias do que humanas. Esta ideia baseia-se numa estimativa feita em 1972 pelo microbiólogo Thomas Luckey, que afinal é bastante exagerada. O número de células humanas e de bactérias deverá ser parecido (tanto, que a relação entre ambos se poderá inverter depois de uma ida à casa de banho). Mas não por isso menos importante.

Somos habitados por bactérias e outros microorganismos durante toda a vida. Mesmo antes de nascermos contactamos com algumas (poucas) na placenta (que era até há bem pouco tempo considerada estéril). Mas é durante o parto começa a colonização a sério. Os bebés que nascem por cesariana encontram as bactérias da pele da mãe e de outras pessoas que lhes toquem. O leite materno também é uma fonte de bactérias e pode ter um papel importante na formação de uma população saudável de microorganismos. Estão na pele, saliva, boca, olhos, vagina e (a maior parte) nos intestinos. Perfazem 1% a 3% do nosso peso. No Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, na exposição Viral (em cuja concepção participei) há uma balança que pesa as bactérias de quem sobe para cima dela (aberta ao público até 11 de Setembro).

A nossa população residente de bactérias é diversa. E nós ganhamos especializações que não tínhamos graças a essa diversidade. Nos intestinos há 100 vezes mais genes de bactérias do que humanos. E alguns deles têm papéis importantes. Podem, por exemplo, codificar enzimas que nos ajudam a digerir coisas muito específicas. Foram encontradas bactérias especiais nos intestinos dos japoneses que permitem digerir certas algas. Sem esta ajuda, o ser humano não é capaz de o fazer. E outros exemplos há. “Diz-me que bactérias tens nos intestinos, dir-te-ei o que comes”, poderá vir a afirma-se como nova máxima. As nossas bactérias também fazem parte do sistema imunitário, um pouco ao estilo dos gangues. Se aparecerem outras, vindas de fora, arriscam-se a levar uma valente tareia.

São importantes e provavelmente não conseguiríamos viver sem elas. A questão é: e se as bactérias tiverem a capacidade de manipular o nosso comportamento? Mesmo que isso esteja em conflito com os nossos interesses? Há um caso extremo que ilustra a ideia do microorganismo que manipula o hospedeiro. Os ratos que têm o cérebro infectados com o parasita Toxoplasma gondii (neste caso não é uma bactéria) perdem o medo do cheiro dos gatos. Mais facilmente são comidos, mas isso é do interesse do parasita, que passa a ter um novo hospedeiro felino, do qual depende para se reproduzir sexualmente (sim, estes parasitas matam para ter sexo).

Como podem as bactérias manipular-nos?

É possível criar em laboratório ratos estéreis, ou seja, que não estão colonizados por nenhum microorganismo. Se esses ratos comerem as fezes (que contêm muitas bactérias) de outros passam a ter comportamentos dos seus dadores fecais. Podem tornar-se mais tímidos ou mais exploradores (mas é capaz de não ser uma boa ideia ingerir as fezes da pessoa que tem sua personalidade favorita). Serão as bactérias capazes de fazer algo semelhante connosco, a partir dos intestinos? São conhecidas várias formas de as bactérias manipularem os hospedeiros, algumas delas compiladas numa revisão de 2014 publicada na revista Bioessays.

Se não fizeres o que eu quero, apanhas

Imagine que uma população de bactérias detecta uma baixa concentração de nutrientes que precisam. Podem influenciar o nosso comportamento através da produção de toxinas que nos causam dor nos intestinos. Sabe-se que são capazes de activar directamente as terminações nervosas responsáveis pela percepção da dor. Ou seja, se não comermos o que elas precisam, dói.

Não gostas? Ah, gostas, gostas!

Estudos em ratos mostram que há bactérias que conseguem alterar os receptores gustativos, na língua, influenciando as preferências alimentares do hospedeiro.

A chave da farmácia

Há cerca 100 milhões de neurónios nos intestinos, ligados ao cérebro através do nervo vagal. Algumas bactérias conseguem produzir moléculas que influenciam o comportamento alimentar do hospedeiro. Produzem moléculas parecidas com moléculas que controlam a disposição e o comportamento dos mamíferos, como serotonina e dopamina. É como termos a chave da farmácia e darem-nos os comprimidos que quisermos sem explicar nada.

Obesidade e contágio

A obesidade pode ser vista como uma epidemia. E se para além da influência que os hábitos e a dieta dos outros têm em nós, as bactérias que favorecem a obesidade se puderem transmitir de pessoa para pessoa? Os microorganismos que se encontram nos intestinos de gémeos em que um é obeso e o outro magro são diferentes. Em geral, uma menor diversidade de bactérias favorece a obesidade. É certo que as bactérias afectam a eficiência da obtenção de calorias a partir dos alimentos.

Mas se considerarmos a capacidade de influenciarem os nossos hábitos alimentares, se coexistirem muitas espécies com necessidades nutricionais diferentes é mais difícil que cada uma delas nos consiga influenciar decisivamente. É plausível que alguns desejos específicos possam ter origem nas bactérias nos intestinos que influenciam o nosso cérebro através do nervo vagal. A ideia da força de vontade para controlar a dieta é provavelmente demasiado simplista. Não só as bactérias, mas também outros factores, poderão ter alguma coisa a ver com o assunto. Da próxima vez que for ao frigorífico, pode-se perguntar: isto é para quem?

Bioquímico

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