A Roseta, a File e os hieróglifos do sistema solar

Os nomes das duas sondas da Agência Espacial Europeia remetem para a história do Antigo Egipto.

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A Pedra de Roseta, que está no Museu Britânico, tem inscrições em hieróglifos, demótico e grego Cortesia do Museu Britânico
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A sonda File, assinalada pelo círculo, a caminho do núcleo do cometa a 12 de Novembro ESA
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A primeira imagem panorâmica tirada pela sonda File no solo do cometa, a 12 de Novembro ESA
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A primeira imagem panorânica tirada no solo do cometa, com um desenho sobreposto no sítio onde está a sonda ESA

File ou Philae, Roseta ou Rosetta? Na verdade, para onde remetem os nomes destas duas sondas da Agência Espacial Europeia (ESA)? Levam-nos até à história do Antigo Egipto e à decifração dos hieróglifos – ou mais exactamente, até à Pedra de Roseta e à ilha de File.

A Pedra de Roseta foi descoberta em 1799, por um militar francês durante a campanha napoleónica ao Egipto. Na versão considerada mais provável dos acontecimentos, a pedra estava embutida na muralha de um antigo forte na cidade de Roseta (ou Rechid, em árabe), no delta do rio Nilo. As tropas francesas iam demolir a muralha, mas o tenente-engenheiro Pierre-François Bouchard ter-se-á apercebido da importância da pedra. A sua particularidade é que tem o mesmo texto escrito em três sistemas de escrita diferentes – hieróglifos, demótico e grego. Como o grego podia ser traduzido, talvez a pedra, ainda que incompleta, pudesse ser a chave de leitura dos hieróglifos e assim desvendar todo um passado, até aí inacessível, de inscrições em monumentos e textos em papiros.

O historiador francês Jean-François Champollion era um dos estudiosos que se debatiam com a decifração dos hieróglifos. Até 1821, num artigo que publicou sobre os antigos egípcios, Champollion estava convencido de que nenhum hieróglifo tinha valor fonético, ou seja, nenhum correspondia a um som ou letra de um alfabeto. Mas meses depois desse artigo mudaria de ideias, ao receber a cópia de uma inscrição que tinha sido encontrada num obelisco na ilha de File, ilha no Nilo que depois foi inundada com a construção da barragem do Assuão.

Descobertas em 1815, as inscrições no obelisco – que pouco depois foi comprado pelo explorador e egiptólogo britânico William John Bankes – estavam em hieróglifos e grego. Ao comparar as duas inscrições, Bankes pensou ter identificado o nome de Cleópatra nos hieróglifos, e anotou esse facto na margem da cópia das inscrições que chegou mais tarde a Champollion.

Por sua vez, quando Champollion comparou a parte dos hieróglifos que teriam o nome de Cleópatra no obelisco com a parte dos hieróglifos que tinha o nome de Ptolomeu na Pedra de Roseta, o historiador francês verificou que havia sinais comuns e que apareciam nas posições esperadas se os nomes fossem escritos com caracteres alfabéticos. O historiador francês é hoje considerado o pai da decifração dos hieróglifos.

A Pedra de Roseta, que após a rendição das tropas francesas, em 1801, passou para mãos britânicas, encontra-se agora no Museu Britânico, em Londres. E o obelisco de File está em Kingston Lacy, uma mansão, na cidade britânica de Wimborne Minster, que pertenceu à família Bankes.

Foi neste passado que se inspirou a equipa de cientistas e engenheiros que estava a planear, na década de 1980, uma visita ao núcleo de um cometa, quando decidiu chamar Roseta à sonda-mãe. Tal como a Pedra de Roseta, os cientistas esperavam que essa missão espacial ajudasse a decifrar os mistérios do início do sistema solar (formado numa nuvem de poeiras e gases), incluindo a origem da água e da vida na Terra. Os cometas são restos de poeiras e gelos desses tempos primordiais, que ficaram preservados até hoje, e que terão bombardeado violentamente a Terra no início da sua formação. Ao saber exactamente como os cometas são constituídos, eles podem ser uma chave para o passado do sistema solar.

Já o nome da sonda File resultou de um concurso lançado pela ESA pouco tempo antes de as duas sondas, uma agarrada à outra, partirem da Terra em 2004, para uma viagem de dez anos até ao cometa 67P/Churiumov–Gerasimenko. Na última quarta-feira (12 de Novembro), essa longa viagem atingiu o ponto alto, com a File a protagonizar uma proeza inédita: libertou-se da sonda Roseta e iniciou uma viagem de 20 quilómetros sozinha até aterrar no núcleo do cometa. 

Voltando ao concurso da ESA, a vencedora, que ganhou uma viagem à Guiana Francesa para assistir à descolagem da missão, foi a italiana Serena Olga Vismara, então com 15 anos, que vivia em Arluno, perto de Milão. “Quando vi o concurso, procurei informações sobre a Pedra de Roseta na Internet e tive a ideia de lhe dar o nome” da ilha, contava na altura Serena Olga Vismara, que hoje estuda engenharia aeroespacial.  

E como é que em português se chama essa ilha? Chama-se File, como refere o Dicionário Lello. Tem uma grafia portuguesa, tal como o nome próprio da cidade onde foi encontrada a célebre pedra, que em inglês se escreve com dois “t” e em português Roseta.

De onde vem então a palavra “Philae”, com todos designam a pequena sonda que aterrou no cometa? Esse é o nome próprio que os anglófonos dão à ilha. Por que razão usar então um nome próprio estrangeiro quando há um nome próprio em português? Na realidade, como se lê na Enciclopédia Britânica, Philae até é o seu nome grego. O nome original da ilha em egípcio antigo era P-aaleq. Mais: o seu nome em copta, uma língua falada no Egipto até ao século XVI, era Pilak, que significa “fim” ou “lugar remoto”. Uma designação que, afinal, se revela muito adequada ao sítio longínquo, a 510 milhões de quilómetros da Terra, onde a pequena sonda File está agora.

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