A política dos mapas foi desmantelada em tapetes

Os mapas não estão todos feitos. Desmapear pode ser o primeiro passo para contrariar um objecto político que passa muitas vezes por neutro e trazer à superfície aspectos da realidade omitidos no mundo cartografado. Designers e arquitectos foram atrás desse objectivo: olharam para a Bagdad cultural atravessada pela guerra, transformaram paisagens em tapetes, mostraram que Angola não é um país pequeno. O resultado pode ser visto em Lisboa na exposição Unmapping the World, que faz parte da edição de 2013 da bienal da ExperimentaDesign e tem como tema No Borders/Sem Fronteiras. Daqui para a frente, felizmente, só há dragões.

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O tapete com centenas de lojas Ikea revela um mundo onde podemos consumir todos os artigos em todo o lado Miguel Manso

Pelo vidro da vitrina, é possível observar o mapa do Congo francês desenhado em 1887. Apesar de estar amarelecido, tem o potencial certo para o aqui e o agora. Portos marítimos como Ponta Negra, hoje cidade costeira da República do Congo, estão marcados no documento. Mas é possível ver muito espaço por nomear no interior africano. Por isso, no mapa, a palavra “inexploré” está escrita cinco vezes, no meio de cordilheiras de montanhas e nas regiões mais extremas do território congolês, naquilo que podemos imaginar como sendo planícies eternas. Este conceito de território “inexplorado” foi escolhido como ponto de partida para a exposição Unmapping the World não tanto por evocar o desconhecido, mas sim como uma possibilidade da realidade total. Afinal, num mapa vazio, sem traçados de rios, sem nomes de vilas e aldeias, cabem todas as possibilidades de um território, cabem todas as verdades.

É essa ideia provocadora que a designer holandesa Annelys de Vet e o designer português Nuno Coelho, curadores da mostra, nos obrigam a pensar e a reflectir antes de subirmos as escadas para ver o resto das obras. “Um mapa nunca pode ser observado como um objecto neutro”, diz Annelys de Vet, fundadora do estúdio DEVET, no início de uma visita guiada à exposição do Palácio dos Condes da Calheta. Os aspectos que estão marcados num mapa, dentro de um território, são alvo de uma escolha, de um interesse, e por isso são sempre políticos. De fora, fi ca uma imensidão de informação, basta pensarmos nos bairros de lata não representados nos mapas de guias turísticos de cidades.

Unmapping the World vive, por isso, da desconstrução dos mapas e da desconstrução de uma visão neutra do acto de cartografar. Cada obra da exposição parte de um acto de  desmapeamento para uma cartografia pessoal e comprometida de um território, algumas vezes mais libertária e crítica, outras vezes mais poética.

Estamos no piso térreo do Palácio dos Condes da Calheta, no cimo do Jardim Botânico Tropical, pertencente ao Instituto de Investigação Científica Tropical, em Belém, Lisboa, onde a exposição está aberta ao público até 22 de Dezembro. Nuno Coelho relembra-nos o simbolismo do lugar. Foi aqui que a Comissão de Cartografia se instalou em 1883, com um objectivo de fazer o reconhecimento de aspectos geográficos, etnológicos, geológicos, históricos, das então colónias africanas portuguesas.

Havia uma urgência por parte de Portugal em obter esta informação para a Convenção de Berlim, onde ficaram definidas as fronteiras das colónias africanas pertencentes aos países europeus. Era uma luta pela soberania: estudar, mapear, conhecer os territórios foram formas de perpetuar o seu controlo. “Este palácio foi importante para a construção de mapas”, resume Nuno Coelho, investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Subimos então as escadas.

A cartografia das bombas
Na entrada da primeira sala, com o tema Conflito, está a única obra feita pela equipa de curadores. Cartographic Artillery são três painéis separados com uma rede de mapas de três países diferentes. O primeiro é do Iraque e mostra 66 mapas e fotografias publicados entre 1988 e 2013 com a localização das supostas armas de destruição maciça, fotografias de satélite de instalações, fotografias de fábricas iraquianas. Estes mapas e fotografias foram publicados em documentos de instituições norte-americanas como a CIA ou em notícias de jornais como o The Guardian, o Haaretz ou o The Wall Street Journal. O resultado é uma cacofonia visual, mas potente, onde a ligação entre o Iraque e os mísseis nucleares fica consolidada.

À frente, outro painel semelhante, desta vez mapas entre 2004 e 2013 do Irão, com armas nucleares e o seu alcance. Atrás deste, um terceiro painel que conta uma história parecida, com a Síria e as armas químicas. “Quão problemático é que um mapa pode ser?”, questiona Annelys de Vet. O folheto da exposição é esclarecedor: “Em relação ao Iraque, foi largamente confirmado que estas suposições [sobre os mísseis nucleares] estavam perigosamente erradas e que estes mapas foram usados como provas falsas. Por isso, como ler os mapas similares da Síria e do Irão?”

Nuno Coelho diz não ter nada contra os mapas, mas insiste que o que está em causa é um problema de transparência e debate-se por ele. “Qualquer razão é válida para se mapear, depende da perspectiva de cada um. Mas achamos errado esconder as reais intenções por trás da fabricação de um mapa”, diz ao PÚBLICO dias depois, por telefone.

Parede à frente, continuamos no Médio Oriente. É a frase de Dennis Wood, investigador e cartógrafo citado numa projecção na parede da escadaria, que ressoa. “Um mapa é um sistema de proposições, é um argumento sobre a existência”, escreve o especialista, num artigo. Baghdad Out é isso, mas na forma de resistência. O atelier holandês Veldwerk fez a cartografia da Bagdad cultural em 2003, 2004 e 2010. Enquanto o resto do mundo olhava para o Iraque com o filtro da guerra, os livros continuaram a ser escritos, as peças de teatro continuaram a ser representadas, os locais culturais da capital do Iraque continuaram a ser frequentados, com data e hora marcadas, apesar de os artistas também serem vítimas de atentados. “Infelizmente, o domínio da informação política e económica dada pelos media não faz qualquer justiça à essência cultural de uma sociedade”, lê-se num resumo do trabalho.

Dois pesos, duas medidas
Seguimos em direcção à sala da Libertação. Na vitrina à esquerda, numa moldura dourada, um mapa: Angola não é um país pequeno. Paulo Moreira, arquitecto a trabalhar no Porto, pegou no famoso mapa de Henrique Galvão e subverteu-o. Em 1934, o militar e escritor sobrepôs as colónias portuguesas no mapa da Europa, para mostrar que não faltavam hectares ao império. Desta vez, Paulo Moreira mostra que cabem dez portugais em Angola, um país em pujança económica, que tem investido fortemente cá, mas com quem mantemos relações diplomáticas complicadas.

Na mesma sala, do lado direito, Double Standards: dois pesos, duas medidas. A situação dos piratas da Somália é enquadrada sob um novo ponto de vista por Ruben Pater. Em jeito de sala de convenções das Nações Unidas, o designer holandês apresenta-nos uma mesa redonda com o mapa do mundo centrado na Península Arábica, no oceano Índico e na Somália, com 12 cadeiras em volta. Por cima, há 12 bandeiras, cada uma é um híbrido entre bandeiras de dois países. É uma metáfora dos navios que passam por aquelas águas. Navios que podem ser originais das Ilhas Marshall, mas que são detidos por uma empresa norueguesa.

Mas também é uma metáfora daquilo que pode estar nos limites da legalidade. “Segundo o que Ruben Pater nos transmitiu, os próprios navios mudam as suas bandeiras durante a travessia que fazem para estarem submetidos a diferentes tipos de legislações, o que lhes permite contornar leis ambientais ou da pesca”, diz Nuno Coelho. Na mesa, duas bandeirinhas, dados rápidos: 90% do mercado mundial faz-se por mar, gera oito biliões (milhões de milhões) de dólares; 22 mil navios passam anualmente pelo golfo de Aden; em 2011, 223 dos 544 ataques de pirataria foram feitos por piratas da Somália — o país com o menor PIB nesse ano; foram gastos 2000 milhões de dólares para combater a pirataria.

Desmapear a crise
Caminhamos para a sala seguinte e subitamente estamos a pisar um tapete onde foram impressas centenas de fotografias quadradas do Google Earth. Em cada quadrado, um mapa com uma loja Ikea no centro. The World of Ikea, um trabalho do designer holandês Bjorn Andreassen, continua numa vitrina com fotografias: duas pessoas com as pirâmides do Egipto em plano de fundo, duas pessoas com uma loja azul Ikea por trás, duas pessoas na Torre de Pisa, duas pessoas com a loja azul Ikea por trás. Poderia haver um balão de banda desenhada em cada uma das fotografias com a seguinte questão: “O que é a identidade cultural contemporânea?” E desta vez lembramo-nos das palavras de Claude Lévi-Strauss, citadas na exposição: “Ameaça-nos a perspectiva de sermos só consumidores, capazes de consumir qualquer coisa em qualquer ponto do mundo, vindo de qualquer cultura, mas de perdermos toda a originalidade.”

A sala do Ikea é a sala do Mercado. Taxodus, outro trabalho instalado aqui, é um jogo para brincar com os paraísos fiscais criado pela designer holandesa Femke Herregraven. O trabalho relembra que a Holanda, no coração da União Europeia, pode ser considerada como um paraíso fiscal para muitas empresas. A designer esteve mesmo para reunir informação sobre 16 empresas portuguesas que optaram por estabelecer-se lá, mas não conseguiu completar o trabalho por falta de tempo. “Desmapear a crise que Portugal está a viver é isto”, diz-nos Annelys de Vet, referindo-se a Taxodus. “É uma crise que é originada numa rede global e esta é uma forma de compreender as suas raízes.”

Voltamos para trás, até à Xiloteca, uma espécie de arquivo com amostras de madeiras das espécies vegetais das antigas colónias portuguesas, que foram recolhidas no século XX. Entramos num mundo castanho, mas também no mundo turístico das Caraíbas trazido pelo colectivo Supersudaca, formado por arquitectos latinos que estão sediados em países diferentes mas continuam a trabalhar em conjunto. Al Caribe! é uma mistura de sons gravados e música que nos remete para um ambiente ébrio de pessoas a chegar a ver e a partir, que se vive naquelas ilhas. Ao mesmo tempo, vários postais mostram o impacto da urbanização no arquipélago, realçando o paradoxo entre a salvação económica que o turismo promete e a destruição do território que causa.

No início desta viagem, Nuno Coelho falou-nos que, durante a organização da exposição, cada sala do palácio pedia determinados trabalhos. A madeira da Xiloteca cheira a trópicos, a lugares distantes, mas também a exploração. Num dos armários há ainda dezenas de embrulhos com amostras de madeira por abrir. Um dos embrulhos guarda 34 amostras de pau-carvão, uma espécie da Guiné conhecida como Prosopis africana. “Há uma urgência em colectar, em classificar, mas depois não temos tempo para fi ltrar toda esta informação”, diz Nuno Coelho. Annelys de Vet insiste: “Não estamos contra a cartografia e o mapeamento, mas não podemos esquecer que deixamos sempre traços por onde passamos, influenciamos o contexto.”

Resistência poética
Zarpamos para a sala da Poesia e ficamos a olhar para Simple Standing Triangle de Yazan Khalili, arquitecto palestiniano. Os trabalhos desta sala representam o lado mais íntimo da exposição. Yazan Khalili preencheu quatro prateleiras de uma vitrina com folhas A5 que parecem ter sido arrancadas de um caderno de escola, todas com um desenho de um triângulo. “Quando a minha mãe me ensinou pela primeira vez a desenhar o mapa da Palestina, eu costumava desenhar um triângulo equilateral de pé”, escreve o arquitecto no resumo da sua obra. O investigador Dennis Wood defende que a utilização frequente de mapas, como conhecemos agora, não terá muito mais de três séculos, e acompanhou o aparecimento dos Estados modernos. Desse ponto de vista, a sua importância está intimamente ligada à definição de fronteiras e à realização formal de uma ideia de território que tem um desenho, é um rectângulo no caso de Portugal, um hexágono no caso de França. Mostrar esse território no mapa é uma legitimação da própria existência de um país num quadro maior de mais nações.

O mapa da Palestina é o oposto. “Não há zona tão detalhadamente mapeada. Cada um tem a sua visão daquele território, nunca houve consenso”, diz-nos Nuno Coelho. Justamente por isso, por se sobrepor a toda esta complexidade, e apropriar-se do valor iconográfico de um mapa para construir a sua identidade pessoal, o olhar de Yazan Khalili apela a um sentido poético de resistência: “Mais tarde aprendi que [o triângulo] não é exactamente equilateral, o seu lado de baixo é maior do que o de cima (...). Há também o lago da Galileia, e o mar Morto, e as várias aldeias destruídas e a linha verde de 1948, e há Israel e a Cisjordânia, e a faixa de Gaza, e os acordos de Oslo, e a Área A e a Área B, e a C, e a H1, e a H2 (...) mas até agora, quando quero desenhar o mapa da Palestina, faço um triângulo equilateral de pé.”

Finalmente, voltamos a mapas desmantelados de referências humanas, mas cheios de paisagem, agora esculpidos em tapetes quadrados, brancos. Rugs é o resultado do trabalho da holandesa Roosmarijn Pallandt. A designer representou em tapetes paisagens aéreas da Tailândia ou do Nepal, como dunas e glaciares. Os objectos foram feitos por artesãos locais, usando fibras ou lãs naturais, que existem naquelas regiões, com métodos tradicionais de tecelagem ou de acolchoamento. Portugal tem dois tapetes, uma zona florestal e um areal que parece ainda atravessado pelo vento. Vistos de cima, em pequena escala, tornam-se territórios completamente inexplorados, tão selvagens como as planícies imaginadas do mapa do Congo. É favor não pisá-los.
 
 

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