A nova grande Universidade de Lisboa e a destruição de um centro de excelência

E assim vimos a primeira obra da nova grande Universidade de Lisboa: destruir um centro de excelência e dispersar uma biblioteca de referência.

Era uma vez uma grande cidade de gente pequena. Pequena mas boa gente, na sua maioria. Tão boa de facto que os menos bons viviam no paraíso, todas as suas patifarias, grandes e pequenas, raramente eram punidas.

O azar da cidade era viver num mundo competitivo em que a prosperidade dos povos dependia do que nesses tempos se chamava ciência e tecnologia. Ora ciência e tecnologia eram esquisitices que pouco excitavam os habitantes do burgo. Muito mais os preocupava o futebol, um estranho espectáculo em que dois grupos de figurantes pontapeavam repetidamente um objecto redondo até o fazer colidir com um estendal de rede.

Apesar do recorrente desinteresse pelas coisas da ciência, algumas décadas atrás, dois homens de visão, António da Silveira e Abreu Faro, conscientes de que, num mundo competitivo, o progresso do conhecimento científico requer instituições especializadas, tinham criado dois institutos, um destinado à desenvolver a Física e a Matemática (o IFM) e o outro as Ciências da Engenharia (Complexo Interdisciplinar).

Com o tempo estas instituições (sobretudo o IFM) foram mudando de nome, pois dá sempre grande conforto à alma lusa mudar os nomes às coisas para que fique tudo na mesma. E neste caso o ficar na mesma, ou quase na mesma, teve um efeito virtuoso. Com o tempo e o trabalho de várias gerações de investigadores, o ex-IFM tornou-se uma referência científica internacional e um viveiro de talentos que proveitosamente povoou as diversas escolas. Um viveiro de pessoas e de grupos e laboratórios que lá se formaram e seguiram o seu caminho natural. Pela excelente produção de trabalho científico, tornou-se uma das raras instituições de impacto internacional, sendo até por exemplo listado por universidades estrangeiras como instituição de referência para pós-doutoramentos. Atraiu numerosos visitantes de outros países. Claro que ter visitantes de outros países é algo de que todas as agremiações se podem orgulhar. Pela atracção do clima e do conforto estomacal, é sempre agradável vir passar uns dias a Portugal. Mas ao ex-IFM não vinham por uns dias. Vinham por períodos extensos, meses, anos, para realizar trabalho efectivo em colaboração com os investigadores residentes.

Ao longo dos anos o ex-IFM, pela investigação aí realizada e pela ampla formação de quadros que realizou, tornou-se um património intelectual valioso. Também o edifício do ex-IFM, construído pelo Prof. Silveira e posteriormente ampliado por iniciativa do investigador Emílio Ribeiro era um património material valioso. Tinha caras infra-estruturas de laboratório e uma biblioteca excelente, com colecções únicas no país e na qual muitos estudantes de doutoramento e outros realizaram os seus trabalhos e pesquisas. O edifício porém, por estranho que pareça, era o único defeito do ex-IFM, pelas cobiças patrimoniais que suscitava. Já no tempo do reitor Sampaio da Nóvoa, com notável desprezo pelos valores científicos, este o tinha querido converter numa extensão administrativa da Reitoria e no processo algumas infra-estruturas laboratoriais foram demolidas e convertidas em gabinetes administrativos. Felizmente vivíamos nos tempos mais esclarecidos do saudoso Ministro Mariano Gago e o processo a tempo foi parado

Foi então que se criou a nova grande Universidade de Lisboa pela fusão de duas universidades já nada pequenas. Algumas almas impias olharam com grande desconfiança esta fusão. Pois não era verdade que unidades mais pequenas eram mais fáceis de gerir e mais dinâmicas? Não era assim por exemplo no caso da Universidade de Princeton ou do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), nos Estados Unidos, que eram frequentemente apontados como exemplos pelos mesmos que agora defendiam a dita fusão.

Nada disso, almas ímpias! A fusão destinava-se a aumentar o impacto internacional da Universidade de Lisboa. Porém a importância duma universidade não se media pela sua dimensão, senão seria talvez uma qualquer universidade chinesa a melhor do mundo. Era mais pelo cociente entre o número de publicações e patentes e o número de investigadores. Mas qualquer criança mediamente dotada da pré-primária sabe que quando se duplica o numerador e o denominador, o quociente não se altera.

Nada disso, almas descrentes! A fusão iria permitir as famosas economias de escala. Porém, tempos passados continuava a haver múltiplos departamentos com as mesmas temáticas e ninguém acreditava que numa universidade com múltiplas escolas e campus, essas mesmas escolas iriam render a sua autonomia a quaisquer desígnios imperiais.

As almas impias continuavam a não compreender o papel da nova grande Universidade de Lisboa. E foi então que a nova equipa reitoral Serra-Gaspar decidiu desfazer o ex-IFM, expulsando os centros científicos, dispersando o acervo valioso da sua biblioteca de referência e alugando os respectivos espaços a uma entidade privada.

É o destino trágico das criações na pátria lusa. De vez em quando há homens excepcionais, com visão, que criam obras excepcionais. Rasgos brilhantes que logo se apagam. Porque logo a seguir virá algum iluminado que em vez de construir e aperfeiçoar a obra já feita, até a levar aos píncaros da excelência, faz tábua rasa do passado e quer construir tudo de novo. E como, em média, a mediocridade é mais frequente que a excelência, também em média as obras são medíocres.

E assim vimos a primeira obra da nova grande Universidade de Lisboa: destruir um centro de excelência e dispersar uma biblioteca de referência.

A nova grande Universidade de Lisboa estava em movimento!

Centro de Matemática e Aplicações Fundamentais

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