A genética explica como os tibetanos se adaptaram a grandes altitudes

Identificada uma nova mutação genética que permite evitar os efeitos nefastos da produção de mais glóbulos vermelhos em altitudes elevadas. Presente só nos tibetanos, essa mutação é recente em termos evolutivos.

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Tibetanos que vivem a 4300 metros de altitude fotografados pela equipa que identificou a nova mutação genética Tsewang Tashi
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Da esquerda para a direita: Felipe Lorenzo, o primeiro autor do novo estudo, com Josef Prchal e Tsewang Tashi Tsewang Tashi

No Tecto do Mundo, como é conhecido o planalto mais alto da Terra, que ocupa a maior parte do Tibete, a escassez de oxigénio não é problema para os seus habitantes tibetanos. O mesmo não se pode dizer para as outras pessoas. Uma das razões que permitem aos tibetanos viverem numa região onde a altitude média é de 4500 metros reside numa mutação genética agora identificada: consiste na alteração de uma única “letra” no código desse gene.

Mas a história desta descoberta, publicada na revista Nature Genetics, pela equipa de Josef Prchal, especialista de medicina interna, da Universidade do Utah, EUA, extravasa a ciência. Para chegar à explicação de como uma singela mutação genética contribuiu para a adaptação à vida em sítios com pouco oxigénio, também foi necessária muita diplomacia científica e cultural.

O Tibete está sob domínio da China. Josef Prchal foi várias vezes à Ásia, como é contado num comunicado da Universidade do Utah, para obter as autorizações que lhe permitissem recrutar tibetanos para o estudo. Precisava de recolher sangue, para extrair e analisar o seu ADN.

Falou tanto com as autoridades chinesas como com representantes dos tibetanos exilados na Índia, onde em 1959 se refugiou o actual Dalai Lama e instalou, em Dharamsala, o Governo do Tibete no Exílio. Mas acabou por perceber que, sem a confiança dos tibetanos no terreno, o estudo não iria a lado nenhum. “Desconfiados dos estrangeiros, recusavam-se a dar sangue para a sua investigação”, refere o comunicado. A sorte de Josef Prchal mudou quando soube que um tibetano tinha chegado à Universidade do Utah. Era Tsewang Tashi, também médico, que acedeu ao pedido de ajuda de Josef Prchal. “Percebi as implicações do trabalho dele não só para a ciência como um todo, mas também para o que significa ser tibetano”, conta Tsewang Tashi.

O projecto ganhou novo impulso com uma certa carta de apoio. “O Dalai Lama sentiu que compreender melhor a adaptação dos tibetanos seria útil quer à comunidade tibetana, quer à humanidade”, diz Josef Prchal.

Aos seus conterrâneos Tsewang Tashi, que está entre os autores do artigo, explicou então o projecto. “Disse-lhes: ‘Ao contrário de outras pessoas, os tibetanos podem adaptar-se melhor às grandes altitudes.’ Ficavam um pouco surpreendidos, mas aceitavam logo. É como se os tivesse feito ver uma coisa nova que era óbvia.”

Mais de 90 tibetanos (no Tibete, na Índia e nos EUA) deram sangue para o estudo. Resultado: 88% tinham uma mutação no gene EGLN1 que não foi detectada em asiáticos de regiões de baixa altitude próximas.

Este gene comanda o fabrico da proteína prolil-hidroxilase-2 (PHD-2), que desencadeia a degradação de outras proteínas: os chamados “factores indutores de hipoxia”, que estão por sua vez envolvidos nas respostas fisiológicas à hipoxia, ou seja, ao baixo teor de oxigénio nas células.

A resposta do corpo à hipoxia inclui a produção de mais glóbulos vermelhos. Se mais glóbulos vermelhos no sangue permitem a chegada de mais oxigénio às células, levado pela hemoglobina, isso também pode ter efeitos graves. O sangue fica mais espesso a essas altitudes, causando a subida da tensão arterial, ataques cardíacos ou acidentes vasculares.

Ora, os factores indutores de hipoxia são moléculas que se ligam a sequências específicas da molécula de ADN, controlando assim a leitura e a passagem de informação genética para outras partes da célula onde uma certa proteína vai ser fabricada. Ao degradar os factores indutores de hipoxia, a proteína PHD-2 interfere no processo de resposta a níveis baixos de oxigénio nas células.

A mutação em questão confere uma vantagem aos tibetanos ao impedir uma resposta excessiva a níveis baixos de oxigénio. Surgida há 8000 anos, é assim bastante recente na história da evolução humana e reside na troca de uma única “letra” do gene (o ADN é feito de quatro “letras”, ou pequenas moléculas, designadas por A, T, C e G, em que o A faz sempre par com o T e o C com o G).

A surpresa dos denisovanos
Já em Julho, outro estudo, na revista Nature, trouxe revelações surpreendentes sobre a adaptação genética dos tibetanos às altitudes: tinham herdado uma mutação genética, também ligada aos glóbulos vermelhos e ainda à hemoglobina, de uma espécie de humanos desaparecida há 30 mil anos — os denisovanos.

A equipa de Rasmus Nielsen, da Universidade da Califórnia em Berkeley, EUA, concluiu que a versão mutada do gene EPAS1 é quase idêntica a uma versão desse gene dos denisovanos, espécie conhecida só a partir do osso de um dedo e de dois dentes, descobertos em 2008 na gruta Denisova, na Sibéria. Este gene regula a produção de hemoglobina, quando os níveis de oxigénio no sangue descem. Nessas condições, a mutação — que já tinha sido identificada, noutros estudos, só nos tibetanos e numa parte pequena de chineses da etnia han com um antepassado comum com os tibetanos — aumenta a produção de hemoglobina e de glóbulos vermelhos de uma forma ligeira.

Ao estudar 40 tibetano e 40 chineses han, a equipa de Rasmus Nielsen concluiu que essa mutação veio dos denisovanos. Talvez assim: os primeiros humanos da nossa espécie a sair de África, há uns 50 mil anos, cruzaram-se com os denisovanos na Ásia e reproduziram-se com eles.

Sendo o oxigénio vital para nós, saber como alguns se adaptaram à altitude pode pois vir a ser útil à medicina.

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