A ciência, de esquerda ou direita?

Se há algo que mais impulsiona a ciência é a liberdade. O sistema científico português é um sistema centralizado na FCT.

Quem declarou a ciência como pertencendo à esquerda foi C.P. Snow em As duas culturas (1958). O texto de Snow parte da verificação de que os homens das ciências e das humanidades têm cada vez maior dificuldade em entenderem-se, e de que entre eles se desenvolve até uma crescente hostilidade. As humanidades encerram um pessimismo existencial, mais preocupadas com a condição humana do que com o bem-estar das pessoas. Ao invés, existe um optimismo social dos cientistas; eles concentram-se nas mudanças efectivas que podem contribuir para uma melhoria significativa das condições de vida de largos sectores da população.

O pessimismo existencial dos intelectuais é associado por Snow a uma cultura tradicional e politicamente de direita. O mundo dos cientistas é predominantemente de esquerda, oriundo de extractos sociais mais populares. O ponto essencial nesta divisão de direita e de esquerda é o optimismo e a confiança dos cientistas no futuro. Enquanto os intelectuais tradicionais cultivam um passado mítico, os cientistas têm “o futuro nos ossos”.

Em Portugal, olhando para os últimos 20 anos, parece que a tese de Snow se confirma. A ciência tem sido apanágio da esquerda. A ciência foi uma prioridade política nos governos de António Guterres e José Sócrates, enquanto os governos de direita secundarizaram a área da ciência. É quase uma história a preto e branco de bons e maus. O ministro socialista José Mariano Gago, celebrado pai do sistema científica nacional, atingiu post mortem o estatuto de herói da ciência e mal vai quem hoje atente contra o seu legado. Do lado da direita, houve a eliminação do Ministério do Ensino Superior e da Ciência e sua inclusão no mastodôntico Ministério da Educação de Nuno Crato. Ainda não está esquecida a acção desastrosa da Secretária de Estado da Ciência, Leonor Parreira, e do Presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia, Miguel Seabra, que motivaram mesmo um Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal 2014-2015.

Não deixa de ser um paradoxo que sendo a direita a grande paladina da exigência e do rigor nos ensinos básico e secundário, nomeadamente na exigência de exames e avaliações universais e divulgação pública dos respectivos resultados, descuide o ensino superior e a política de ciência. O sistema é um só e se não houver uma sólida formação científica de professores nas universidades também não se consegue uma escolarização obrigatória de elevada qualidade.

Obviamente a dicotomia de C.P. Snow está muito datada. Desde logo porque os avanços tecnológicos que o mundo socialista à altura apresentava face ao mundo livre (o lançamento do Sputnik pela União Soviética em 1957) se revelaram de pouco fôlego. A corrida ao espaço foi ganha pelos americanos com o programa Apolo e a chegada à Lua na década de 60. Mas está datada sobretudo pela explosão das novas ciências sociais, essas sim maioritariamente de esquerda. Além disso, as apostas mais bem sucedidas na ciência e na tecnologia até têm ocorrido em regimes capitalistas, como o demonstram os casos da Coreia do Sul ou Israel, para não falar da Holanda ou Suiça.

Se há algo que mais impulsiona a ciência é a liberdade. Há uma passagem no romance de Alexandre Soljenitsine No Primeiro Círculo que exprime, de uma maneira sublime, essa ligação. Glosando o diálogo do Grande Inquisidor de Dostoievsky, Soljenitsine põe Abakumov, ministro de Estaline, a interrogar no meio da noite o engenheiro Bobynin. Por que razão os melhores cientistas soviéticos, reunidos no melhor campo do Gulag e munidos de todos os meios financeiros e tecnológicos, não eram capazes de desenvolver dentro do prazo o telefone secreto que as autoridades lhes exigiam. “Mas quanto tempo vai demorar ainda mais, um ano, dois anos?” perguntava o ministro. “Quem são os culpados do atraso, quem são os sabotadores?” A resposta de Bobynin é antológica: “Mas o Sr. Ministro acha que os cientistas são mágicos com uma varinha de condão? ‘Faça-me um castelo para amanhã’ e amanhã o castelo está feito. E se o problema estiver mal formulado? E se surgirem novos fenómenos? Dar um prazo! Não sabe que é preciso mais do que uma ordem? Você precisa de homens livres, bem alimentados e de mente livre.” Em suma, em prisões, sob ordens, podem-se produzir peças de vestuário e armas, mas não se pode produzir ciência.

O sistema científico português é um sistema centralizado na FCT, cristalizado em laboratórios e unidades de investigação, e avesso à autonomia das universidades. A “esquizofrenia” que apontei ao sistema, em artigo publicado aqui, mantém-se. É necessário libertar a ciência da tutela do Estado e deixá-la respirar nos espaços próprios que são as universidades.

A ciência não é de direita, nem de esquerda. À direita e à esquerda há regimes totalitários e a ciência é filha da liberdade. Quanto mais liberal for uma sociedade tanto mais favorável será o desenvolvimento da ciência. A baía de São Francisco na Costa Oeste dos Estados Unidos ou a zona de Boston na Costa Leste são áreas privilegiadas de instituições científicas porque aí casam da melhor forma capital, livre iniciativa e liberdades individuais. Era bom que tanto os partidos à esquerda como à direita em Portugal entendessem isso.

Reitor da Universidade da Beira Interior

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