O omelette man O omelette man

Foto
FILIPE MORATO GOMES

Há pessoas assim, que merecem ver a sua história contada. Pessoas que se orgulham muito da vida que têm e que levam; mesmo que essa vida se conte em poucas linhas, e seja feita de muitos dias que foram quase sempre iguais. De Janeiro a Dezembro, de segunda a domingo, desde que o sol nasce até muito depois de o sol se deitar.

A vida de Ramkishan Gawlani é feita à frente de um fogão, com paletes de ovos à volta. É passada numa daquelas bancas que servem comida na rua e que se multiplicam pelo continente asiático e, já agora, e aqui também é o caso, pelo subcontinente indiano. Gawlani tem hoje mais de 70 anos, e desde os cinco que anda à volta de panelas, como aqui dizíamos. Começou, pois, muito criança e como mero funcionário, que servia todo o tipo de comida. Não sabemos, até, se era uma "aranha humana", como chamou Aravid Adinga, o autor do magnífico livro O Tigre Branco àqueles que andam por debaixo das mesas e das cadeiras a limpar o lixo dos que estão na mesa a tomar chá.

O que sabemos é que Gawlani não precisou de matar ninguém para subir na vida, até porque a vida que quis ter não o levou a subir de posto. Mantém-se à frente da mesma barraca.

A sua liberdade - a de ter um negócio próprio - veio no mesmo ano que em Portugal marcou Abril no calendário. Mas a revolução na vida de Gawlani havia de chegar bem mais tarde, em 1999, por causa de uma menção de algumas linhas num guia que é como que uma bíblia para a maior parte dos que se aventuram a viajar pelo mundo. Quando os autores do Lonely Planet inscreveram a minúscula banca de comida de Ramkishan Gawlani na lista dos lugares a não perder para comer uma omeleta, ele, se não ficou com a vida de pernas para o ar, ficou (nós confirmamos!) sem mãos a medir.

Os minutos do dia são passados ou a partir um dos dez mil ovos que gasta por semana, para fazer a sua famosa e justamente reputada omeleta de queijo, ou então, quando não está de costas para os transeuntes e está de frente para quem passa, a interpelar turistas e locais, a experimentar "a verdadeira omeleta" mencionada pelo Lonely Planet. Sim, que agora à volta da clock tower e do mercado de Jodhpur já não faltam omelette shop". E há uma mesmo ao lado cujo dono bem tenta dizer que tem omeletas igualmente boas, mas Gawlani insiste que são dele as originais.

Nesta guerra de ovos, quem ganha é quem experimenta. E nenhum negócio podia escapar a tamanha pressão se não mantivesse a qualidade. E, no caso do omelette man - agora foi praticamente rebaptizado -, com tantas omeletas a sair por dia, a boa publicidade seria facilmente desmontada se a omeleta não fosse, de facto, uma perdição. À frente da banca do omelette man não cabem mais do que cinco pessoas sentadas em bancos improvisados. Mesas não há, mas há a tentação de pousar o prato (para pegar no copo) numa pilha de livros ali ao pé. Mas não podemos, ou melhor, não devemos. Folhear esses livros também faz parte do "ritual".

Por esta altura já devem ser mais do que 15 os livros de recomendações que ali se empilham, com gente de todo o mundo a escrever louvores aos ovos e parabéns às omeletas. Antes de mim, um inglês repete a mensagem que ali deixara inscrita, num outro livro, em 2001. Diz que nada mudou. Que o sabor está igual, senão melhor. E até o preço não mudou muito - Gawlani continua a cobrar cerca de vinte rupias (o que dá menos de 50 cêntimos). Temos de acreditar no inglês, até porque a prova feita revela uma especiosa omeleta, de trago inesquecível.

A história de Ramkishan Gawlani, que ele fez questão de me contar, como deve contar a todos os que acedem a sentar-se num dos cinco bancos, impressionou-me. Por ter conhecido o sucesso com uma vida simples, provando que uma coisa, mesmo que trivial, quando muito bem-feita, pode e deve ser reconhecida. Lembrei-me do acendedor de candeeiros do Principezinho, de Saint-Exupéry, e transformei aquela banca de venda de omeletas num pequeno planeta.

Mas levou-me a outras reflexões. Sou das que teoriza e polemiza a ditadura dos guias de viagem, ao mesmo tempo que não saio de Portugal sem eles. E, a maior parte das vezes, acabo por seguir-lhes as recomendações e as pisadas. Em Jodhpur, ainda bem que o fiz. Não cheguei a experimentar outras omeletas, por isso não sei se as do vizinho do Galawni não seriam, eventualmente, melhores. Mas provei lassis (bebidas à base de iogurte muito apreciadas na Índia) em vários sítios do Rajastão, mas nenhum me ficou na memória e na língua como aquele de makhania (açafrão) que bebi no Shri Mishral Hotel, também em Jodhpur. O nome engana, não é um hotel. É como que uma leitaria, com mesas corridas e bancos limpos, onde só temos que nos sentar, que um makhania lassi é colocado à nossa frente. E que delícia. Estupendamente espesso e cremoso. E doce, apesar de, ou sobretudo, por causa do açafrão. O Lonely Planet recomenda esta cafetaria, mas nem precisava. Bastava seguir os locais.

Sugerir correcção