O feminismo liberal a normalizar a extrema-direita

Caras feministas liberais, não deixem cair a agenda que conseguiram consensualizar com as outras, as incapazes de esquecer que mais de um quarto das mulheres portuguesas vive com o salário mínimo.

Há hoje um feminismo liberal que entende a eleição de Meloni como um serviço à causa feminista. Von der Leyen saudou Meloni como primeira mulher à frente do governo de Itália, Hillary Clinton viu a sua vitória como uma oportunidade para as mulheres, e depois se avaliaria a sua política, e logo por cá apressaram-se algumas a sublinhar que a eleição de uma mulher é, em si, um ganho, independente da ideologia e da política. Vale a pena descascar alguns problemas desta leitura.

O primeiro é que esta dissociação implica olhar para uma mulher na política como um vasilhame, sem ideologia nem agenda política, um corpo no espaço público, guiado pela “natureza” para a ação protetora das outras, qual vocação da essência feminina. Sem lutas, sem mulheres reais, o feminismo é, assim, esvaziado de história. É neste quadro que a colunista Maria João Marques apresenta o rol de ganhos feministas, da Segunda Guerra Mundial à monarquia britânica, e sustenta que, se Meloni incrementar a segurança, “tem sem dúvida uma política feminista”, por proteger a liberdade das mulheres.

Qual segurança? As mulheres que alinharam no ataque ao Capitólio, e foram acusadas, defenderam-se, evocando a proteção dos seus filhos e maridos, convocando a segurança da sua família, portanto. Segurança para todas? Para as mulheres migrantes e refugiadas, para as pessoas LGBTI? As feministas liberais naturalizarão o seu classismo, fechando os olhos ao radicalismo das políticas de Meloni contra todos estes setores da população?

O segundo problema é o branqueamento do pensamento desigualitário e antifeminista da extrema-direita. A raiz do pensamento destas formações é pro-organicista, assenta na defesa da família tradicional/“natural” como célula base da sociedade e anterior ao Estado, condena a igualdade em nome da hierarquia, é antifeminista, no quadro da “guerra cultural” contra a esquerda e o marxismo, que reporá a Natureza, o Sexo, a Família nos seus devidos lugares.

Foto
Giorgia Meloni cumprimenta Ursula von der Leyen. Primeira visita oficial da nova chefe do Governo italiano foi a Bruxelas STEPHANIE LECOCQ/LUSA

O terceiro problema é ignorar o valor instrumental das novas lideranças femininas no “mainstreaming” da extrema-direita. Associadas à maternidade, à nação, à prosperidade, elas são uma espécie de alegorias vivas que transportam para a política o cuidado, o polimento das arestas, como se não estivessem lá para impor o programa da extrema-direita e para colaborar na ultrapassagem do “gender gap”, como aconteceu com Le Pen, desde as eleições de 2016, não se descurando que 27% das mulheres votaram em Meloni.

Caríssimas feministas liberais, por ora até podemos esquecer que se evocam Tatcher eu evoco os mineiros e a destruição dos serviços públicos, e assim vos deixo alguns apelos. Poderia começar por vos dizer que uma mulher na política não é um “vasilhame da natureza”, mas aproveito a oportunidade para vos convidar a não deitar borda fora as lutas, a história das lutas e das conquistas, e a não ignorar o papel que o feminismo liberal poderá ter tido nos sucessos de Trump, de Le Pen, no recuo da agenda dos direitos sexuais e reprodutivos nos EUA.

Aproveito esta oportunidade, sobretudo, para apelar a que não deixem cair a agenda que até conseguiram consensualizar com as outras, as feministas incapazes de esquecer que mais de um quarto das mulheres portuguesas vive com o salário mínimo. Depois do aplauso, como fica o combate contra as violências de género, a agenda dos direitos sexuais e reprodutivos e a dos direitos das pessoas LGBT? Talvez ainda se consigam arrepiar com as palavras de Meloni: “Loucura é defender a banalização do assassinato de crianças no ventre materno!”

Importa não ceder à agenda antifeminista da extrema-direita, não escorregar nas armadilhas, não se deixar embalar pelos chavões que vão criando laços entre o feminismo liberal, o centrismo e o nacionalismo de direita, em nome da força do feminismo na defesa da democracia.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 13 comentários