SNS para animais não avança este ano, mas há mais para fazer: “O Governo tem de deixar a provedora trabalhar”

A Provedora do Animal, Laurentina Pedroso, reflecte sobre os projectos discutidos com o Governo a propósito do bem-estar animal e a “inoperância do Estado” em resolver o assunto. Para o futuro tem novas iniciativas: proibir o acorrentamento permanente e criar um Sistema Nacional de Saúde para animais em risco que, afinal, já não vai acontecer este ano. “Do que é que estamos à espera?“, questiona.

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Laurentina Pedroso, provedora do Animal Diego Nery

É difícil resumir o percurso profissional de Laurentina Pedroso em poucas linhas. Foi bastonária dos Veterinários durante cinco anos e directora executiva da Associação Portuguesa dos Industriais de Carnes até ser escolhida pelo ex-ministro do Ambiente João Pedro Matos Fernandes como primeira provedora do Animal, cargo que concilia desde 2021 com a direcção da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Lusófona.

No total, são mais de 30 anos dedicados ao serviço dos animais e à sensibilização dos tutores sobre como cuidar deles. No Dia Mundial do Animal, que se assinala a 4 de Outubro, Laurentina Pedroso conta em que fase estão os projectos que planeou e as novidades para os próximos meses. “Vamos tratar os animais em estruturas sem custos para o Estado e que já existem, que são as entidades de ensino de Medicina e Enfermagem Veterinária”, exemplifica.

Sinaliza ainda que manter os animais acorrentados de forma permanente “não tem nada de normal” e propõe a criação de clínicas móveis com parte das verbas que foram destinadas ao combate aos incêndios. “Neste momento, é só necessária vontade política”, aponta.

Disse que Portugal ia ter um Sistema Nacional de Saúde para animais até ao final do ano. Este projecto vai mesmo acontecer?
Essa era a minha esperança. Pedi formalmente ao Governo que me deixasse liderar a criação do Sistema Nacional de Saúde para animais em risco e também a estratégia de uma rede de socorro de emergência animal.

Espero que o Governo me dê permissão para desenhar esse sistema nacional com que sonho desde o tempo em que era bastonária e criei projectos, como o cheque veterinário, para fundar uma rede alargada de cuidados médico-veterinários. Não vivemos num país para ricos e essa rede deve assentar em estruturas sem custos para o erário público.

Em que consiste este serviço?
Estamos a falar em animais em risco, animais que foram abandonados e estão ao cuidado de câmaras municipais e de associações zoófilas, que resultam de situações de socorro como aquelas que vivemos nos incêndios.

Depois, não é só destinado a animais de companhia. Tivemos situações muito complicadas nos incêndios deste Verão, por exemplo, em Palmela e na serra da Estrela, em que era muito difícil accionar uma rede de auxílio a animais de pecuária. Vamos tratar os animais em estruturas sem custos para o Estado e que já existem, que são as entidades de ensino de Medicina e Enfermagem Veterinária. Propus ao Governo, e já o fiz com o anterior ministro do Ambiente [João Pedro Matos Fernandes], a aquisição de meios móveis de socorro, clínicas sobre rodas que se deslocam pelos locais onde o problema está a acontecer. Estas estruturas não têm ainda enquadramento legal. É preciso alterar a legislação.

Se tudo isto já foi discutido com o ex-ministro do Ambiente, e se estes hospitais escolares já estão equipados, a que se deve esta demora?
A demora existe, porque para um sistema começar a ser aplicado tem de ser estruturado e só se pode estruturar um sistema destes quem tem conhecimento para o fazer. Posso não estar a ser muito modesta, mas, tendo em conta o meu percurso, considero que tenho conhecimento para o fazer.

Quando houve os acidentes na serra da Estrela, esteve-se muito tempo a decidir o que se fazia a rebanhos de ovinos que estavam em sofrimento e que talvez precisassem de um procedimento de eutanásia. Nessa altura, pedi ao anterior ministro que houvesse verbas do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] alocadas no âmbito dos incêndios que contemplassem a aquisição destas clínicas móveis. Uma por região era suficiente e não estamos a falar de custos exagerados.

Estas redes móveis já existem no Brasil, nos Estados Unidos e em Inglaterra, para prestação de cuidados médico-veterinários. Com este propósito, é inovador. Estas unidades podem ainda servir para se organizar campanhas anuais de esterilização gratuita e dar uma ajuda aos municípios nestas situações. Temos uma legislação que, muito bem, proíbe o abate animal, mas continua a encher os centros de recolha oficial de animais que procriam de forma irregular ou são abandonados. Evitar o abandono é, em primeira mão, evitar que os animais nasçam.

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A Provedora propôs a criação de um SNS para animais até ao final do ano, mas não vai acontecer por enquanto Diogo Nery

Considera que o Governo está no caminho certo para tratar este tema ou é preciso fazer mais?
Acho que temos as pessoas certas nos lugares certos, mas é preciso deixar essas pessoas trabalhar, nomeadamente a provedora. Se eu peço ao Governo que me deixe criar estes sistemas que já estão a ser criados noutros países e tenho esta experiência de profissão, e se o Governo não responde e não deixa…

Em Agosto, pedi ao primeiro-ministro, com o conhecimento da ministra da Agricultura que tutela uma parte e do ministro do Ambiente que tutela outra, que me deixe criar esta estrutura e pôr estes grupos a trabalhar. Neste momento, é só necessária vontade política. Estas situações exigem custos, mas têm de ser mínimos. Temos capacidade para criar algo que nunca foi criado e podemos ser exemplo na Europa e no mundo. O Governo tem de deixar a provedora trabalhar. E deixar a provedora trabalhar é olhar para os pedidos que eu lhes fiz e começarmos a pôr todos estes planos no terreno.

Propõe também que o Governo altere o código penal dos crimes de violência doméstica e maus-tratos para incluir animais. Na semana passada, todos os partidos, à excepção do PAN, rejeitaram o agravamento das molduras penais para crimes contra animais. Como reage a isto?
Sejamos realistas: nós, neste momento, não conseguimos sequer penalizar, quanto mais agravar. Acho que o mais importante é sermos claros. É inadmissível um Estado de direito que se preze em defender o bem-estar dos animais não considerar maus-tratos a animais em situações que nós vimos serem anuladas pelos tribunais e algumas resultantes na morte.

Eu já nem falo em agravar. Falo em manter o conceito de que isto é crime.

Neste momento, a lei de maus-tratos só abrange os animais de companhia. Deveriam ser incluídos todos os animais?
O que é preciso é esclarecer que os maus-tratos e a morte do animal sejam considerados crimes e sejam penalizados. Aquilo que nós temos é um conjunto de decisões que foram revertidas três vezes pelo Tribunal Constitucional que colocam aqui em causa que possa haver uma penalização deste crime. Se estas situações vão ser consideradas inconstitucionais, temos de incluir os animais na Constituição. É inserir “e os animais” na frase do Artigo 9.º.

É preciso continuar a aplicar multas duras e tipificar o crime de maus-tratos a animais, senão vivemos neste impasse em que as pessoas saem impunes quando torturam e matam o animal. Isto é totalmente inconcebível.

Manter um animal acorrentado está incluído nesta matéria de maus-tratos?
Sim. Isso é algo que eu quero chamar a atenção. Uma das situações que eu gostava de ver este Governo legislar é a de proibir o acorrentamento de animais. Estamos a falar de animais que não se conseguem mover além do comprimento da corda que os limitam e que vivem dessa forma.

Quando hoje em dia temos um Governo que dá dignidade a animais de companhia de uma forma tão importante que lhe institui uma tutela própria e separada, não é bem-estar animal mantermos um animal preso a uma corrente. No entanto, vemos isto e achamos que é normal. Isto não tem nada de normal.

A primeira forma é proibir o acorrentamento permanente dos animais. Vai solucionar alguma lei? Nós sabemos que não. No Orçamento do Estado de 2021, já havia uma proposta para um plano de desacorrentamento, mas estes planos voluntários dão condições às pessoas para o fazerem, se quiserem. Devemos criar uma norma transitória que diga que é proibido manter os animais à corrente e, terminado esse período transitório, para mim, a seguir, as pessoas têm de ser penalizadas por incumprimentos.

Educar não chega?
Não. Enquanto médica veterinária, trabalho há mais de 30 anos a sensibilizar pessoas que têm animais acorrentados a não o fazerem e as pessoas simplesmente dizem: “Eu tenho porque tenho, o cão é meu.” É surpreendente este argumento e até é estranho que diga que não o podem ter de outra maneira. Eu penso assim, mas existe alguma lei que obriga as pessoas a ter cães?

Dizem que não têm condições para ter cães porque eles fogem ou que não podem levá-los a passear ou ao veterinário, mas têm-nos na mesma. As pessoas têm animais porque querem. Então, se os querem, têm de saber o mínimo de regras. O primeiro é o respeito e a ética pela vida do outro ser. Não acredito num plano voluntário de desacorrentamento. É uma questão de mentalidade.

Outra das suas bandeiras é incluir a protecção dos animais na lei da violência doméstica através de redes de abrigo para animais e famílias de acolhimento. Como é que isto funcionaria?
As famílias de acolhimento já existem em países como Espanha, que criaram um sistema que funciona de forma muito parecida como as situações vividas com crianças. É uma situação em que há um conjunto de pessoas bem qualificadas por todo o país que podem ficar temporariamente com estes animais para que possa dar tempo à vítima de providenciar soluções e sair da alçada do agressor.

Não é uma situação desejável, é apenas temporária. Aquilo que é desejável é que a vítima, quando vai para a casa-abrigo, possa levar os seus animais, e essas casas têm de o permitir. Em termos de Orçamento do Estado, também já foi considerado que até ao primeiro trimestre de 2021 ia ser feito o levantamento das casas-abrigo e que iria ser permitido às vítimas de violência doméstica levarem os seus animais. Daquilo que eu tenho conhecimento, isso ainda não está a ser feito.

É mais uma situação que pedi ao Governo [para intervir] nestes últimos três meses. Que me deixe criar as regras-base para enumerar as condições que os abrigos podem ter para a vítima levar os seus animais. Esses requisitos são facílimos de apresentar e também não são precisos muitos meios. Do que é que estamos à espera? Não entendo a inoperância do Estado, mas vou continuar a insistir.

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