No Travel Fest, os viajantes não viajam por viajar: as viagens são transformadoras, são as suas vidas

Como é viajar com um propósito? Eis uma questão transversal do 2.º Travel Fest, promovido pela associação de bloggers de viagem. Matosinhos tornou-se o centro do mundo nesta festa de grandes viajantes e contadores de viagens. Sempre entre o sonho da viagem e a realidade pura e dura: as “lições” de Paulo Moura, Ana Abrão, Kamran Ali, Andrea Bergareche, Kitato, Gustavo Carona, Andreas Noe, Oliver Astrologo ou Jackson Groves.

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"A minha maior motivação é o desafio físico de caminhar" Jackson Groves

Aqui não se viaja por viajar. Há quem viaje para captar a essência dos povos (por mais insondável que ela seja), quem viaje para cumprir uma promessa — nem que seja a nós próprios — para conhecer o outro lado do mundo — e, porque não, o nosso país? — ou para tentar ajudar, com pouco ou muito, outros humanos. O certo é que, no Travel Fest de Matosinhos, todos os presentes viajam com o propósito de tentar descobrir e viver a essência da grande viagem.

O encontro, promovido pela Associação de Bloggers de Viagem Portugueses (ABVP), voltou para um fim-de-semana cheio de histórias de alguns dos “viajantes mais icónicos do planeta, fotógrafos, videógrafos e escritores”. O Salão Nobre da Câmara Municipal de Matosinhos encheu-se para “partir à descoberta” e principalmente para que todos os participantes possam ser “viajantes mais conscientes”, para que passem a explorar “com causas”, para que tentem “fazer um pouco a diferença para que o mundo possa ser um pouco melhor”, nas palavras de Filipe Morato Gomes, presidente da ABVP.

Ao longo destes dois dias de festival — a edição do próximo ano já está marcada e acontecerá no Teatro Jordão, em Guimarães nos dias 23 e 24 de Setembro —, fomos transportados para os quatro cantos do planeta e descobrindo o propósito que levou todos estes aventureiros a saírem da sua zona de conforto. Ana Abrão, fotógrafa de profissão, levou-nos até à Índia para conhecermos a comunidade de Sadhus, uma tribo que deixou tudo para trás para ir em busca da religião. As fotografias que nos mostra dão conta da essência desta comunidade — é isso mesmo que Ana procura quando viaja. “Ao longo do tempo, fui adquirindo uma forma própria de viajar. Gosto de estar nestes locais, gosto de tentar conhecer verdadeiramente a cultura, gosto de estar com as pessoas e gosto de as fotografar. E isso leva tempo. Conhecer a cultura desta forma, é intenso, vibrante e completo. E é isso que procuro”, menciona Ana, enquanto recorda, com saudade, as fotografias e os sentimentos vividos.

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Ana Abrão levou-nos até à Índia Carles Mass

Com Kamran Ali, ciclista e fotógrafo, viajamos desde a sua terra natal, no Paquistão, para a Alemanha, local onde iniciou os estudos superiores. As fotografias que nos transmite revelam um sentimento único pelo melhor transporte que conhece, aquele que está mais próximo dos caminhos e das pessoas. Esta paixão levou a que estabelecesse uma promessa para o futuro. “Um dia irei fazer esta viagem de bicicleta”. As fotografias que nos mostra de seguida levam-nos até um hospital, no Paquistão, onde a sua mãe estava internada e acabaria por falecer. Kamran não conseguiu concluir a viagem e, então, sentiu-se perdido.

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"Abranda, Kamran, estás a ir muito depressa" Carles Mass

As fotografias que se seguiram mostram-nos a conclusão do tão desejado sonho e do embarque numa nova viagem de bicicleta, de Ushuaia ao Alasca. Com esta viagem, Kamran aprendeu duas grandes lições. A primeira é que deveria ir mais devagar na bicicleta. “'Slown down, Kamran. You are going too fast'” (Abranda, Kamran, estás a ir muito depressa — palavras de um caminhante com quem se cruzou) é a mensagem que recorda e que o fez mudar a maneira como viajava. “A beleza de abrandar é que apenas não vês a estrada como também podes experienciar o mundo”, recorda. A segunda lição com que terminou o discurso foi que “nunca és demasiado pequeno, demasiado fraco para ajudares alguém. Podes sempre doar dinheiro, doar as competências ou o talento que tens ou dar o teu tempo”. A mensagem ainda é válida — da venda das suas fotografias no Travel Fest, os 1035 euros (e mais algumas encomendas de impressões) serão entregues à Akhuwat Foudation no apoio à catástrofe provocada pelas cheias.

A Andrea Bergareche, mais conhecida pelo blogue Lápiz Nomada, um espaço onde partilha informações sobre as viagens que realiza para todas (e todos) as que querem viajar sozinhas. As fotografias que nos revela transportam-nos até à América do Sul. É aí que começa a aventura, à boleia de várias pessoas, porque “permite-te viajar e conhecer pessoas de todos os estratos sociais e dá-te uma perspectiva muito mais ampla do que quando viajas em transportes públicos”, confessa. As aventuras que nos conta de seguida levam-nos até a uma viagem de 16 meses pela Ásia, começando na Índia, tudo feito à boleia e não transmitindo nenhum medo por viajar sozinha. “Muitas pessoas dizem que para uma mulher viajar sozinha é muito arriscado, mas também é dessa forma que temos mais oportunidades, que se abrem mais portas e que se estendem mais mãos”. É, no fundo, esse o propósito de Andrea quando embarca nas viagens, mostrar e ajudar outras mulheres a viajar pelo mundo.

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Lápiz Nomada viaja à boleia Andrea Bergareche

No final do primeiro dia do festival, fomos transportados para o Bangladesh com uma fotografia do jornalista Luís Octávio Costa (Kitato no Instagram) que foi capa do Público. Fomos transportados para a vida num campo de refugiados no outro lado do mundo. Lá ou em Portugal, o segredo é muitas vezes a forma como se contam as historias. “As coisas estão lá, não é preciso utilizar Photoshop, é só preciso ver a realidade de uma outra perspectiva para contarmos uma história diferente de um local”, aponta Kitato por entre várias das suas fotografias nesta rede social. As viagens que faz é no sentido de “conhecer as pessoas” e desde “o macro até ao micro, tudo vale para contar uma história” e “não é preciso ir até ao fim do mundo para a contar”, reflecte.

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Rui Baptista e Filipe Morato Gomes, vice e presidente da ABVP, já anunciaram o palco da terceira edição do Travel Fest Diogo Oliveira

Gustavo Carona, médico anestesista e intensivista no hospital de Matosinhos, foi o primeiro convidado do segundo dia do evento. A conversa transportou-nos para uma outra realidade, fora das belas paisagens dos destinos do dia anterior. Aterrámos numa região perto de Alepo, na Síria, onde ficámos a conhecer as memórias de como é trabalhar durante uma guerra. “Mesmo sem ter tocado em nenhum doente, mesmo sem ter exercido Medicina, senti que a viagem estava feita, que o objectivo principal estava cumprido. Estabelecer ligação, conectar povos, mostrar que nós nos preocupamos, mostrar que realmente não existe nenhum local no planeta onde a humanidade não seja capaz de unir”, recorda Gustavo das memórias enquanto estava ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras. As histórias que conta durante a apresentação ao público do Travel Fest não são de aventuras, são de vivências reais por destinos incapacitados. “O que retiro das viagens são as pessoas, são as histórias de vida. Não vi quase nada da Síria, não vi nenhuma cidade, não faço a mínima ideia do que é que a Síria tem de interessante para se ver, mas sinto que conheci muito bem aquele povo através das histórias. E, para mim, essa é a verdadeira essência da viagem”, transmite.

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A segunda edição do Travel Fest aconteceu em Matosinhos Diogo Oliveira

De volta a Portugal com Andreas Noe, conhecido por The Trash Traveler, o alemão que limpa as praias portuguesas do plástico que nelas encontra. Por entre músicas animadas tocadas pelo uquelele de um amigo, fomos levados para várias praias do país, sempre com a mensagem de que em cada praia existem enormes quantidades de lixo na forma de plástico. “Queria alertar de uma maneira engraçada, divertida e criativa. Porque é dessa forma que podemos inspirar outras pessoas a começar a agir”, menciona durante uma conversa animada.

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A divertida (e incisiva) apresentação do Trash Traveler Carles Mass

Com o escritor Paulo Moura, avançámos para o mundo da literatura, recolhendo conselhos para a escrita em viagem. Para o escritor, “a literatura de viagem tem que ter uma ‘maldição’”, como aquela que aconteceu ao jornalista Tiziano Terzani, que, estava escrito, iria morrer de um desastre de avião. “Termos uma maldição pode ser um pretexto, algo que nos move ou que nos obriga a ir até ao destino. E mesmo não tendo uma razão, temos que inventar uma”. Para os viajantes que querem produzir conteúdos escritos (e não só), fica outro conselho importante: “O viajante tem que ter uma atitude calma, sem pressa, mas quando vê alguma coisa que lhe interessa ‘pára tudo!’ e vai concentrar-se nesse aspecto e investigá-lo até às últimas consequências. E só depois é que pode continuar a viagem”.

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Se vai de viagem, leve consigo uma maldição, diz o escritor Paulo Moura Carles Mass

Embora em campos diferentes, não é uma perspectiva muito diferente da do italiano Oliver Astrologo, um videógrafo que já colaborou com importantes marcas internacionais, como a Mercedes Benz, Visa ou Google. O vídeo com que iniciou a apresentação fez-nos perceber que o que importa para este amante do vídeo são as pessoas. “O meu ponto de vista é um pouco diferente, porque o meu foco é o destino através da perspectiva da população local”, conta. Viajamos para o Japão, Indonésia, Itália e República Dominicana.

No final do segundo dia do festival, aterramos na Austrália, país natal de Jackson Groves, autor do blogue Journey Era, espaço que revela os melhores guias para caminhadas, praias e cascatas do mundo. Rapidamente seguimos viagem para o Oregon, nos Estados Unidos, onde esteve durante alguns anos a frequentar uma universidade. Foi aí que começou a carreira de bloguer de viagens. Visitou vários locais com o objectivo de “criar guias que ajudassem as pessoas”, conta. “A minha maior motivação é o desafio físico de caminhar, explorar lugares e criar um itinerário. Não pertenço à cidade, fico mais feliz por estar nas montanhas e é isso que me mantém vivo, ir a lugares e depois documentar as minhas aventuras e partilhá-las”.

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Ama Dablam Jackson Groves

Artigo editado por Luís Octávio Costa

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