Dentista. Advogado. Cuidador. Estudante. Retratos da maior comunidade imigrante em Portugal

A propósito dos 200 anos da independência do Brasil, fomos falar com brasileiros que vieram para Portugal. Sete pessoas que executam profissões que são ou foram ocupadas por muitos outros brasileiros. Retratos dentro da grande fotografia dos que têm chegado ao longo dos anos.

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Ellen Lima tem 35 anos, está há dois a viver em Portugal e a tirar um doutoramento em Modernidades Comparadas, Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho NELSON GARRIDO

Um dentista, uma estudante de doutoramento e escritora, uma cuidadora, um actor, um empresário, uma recepcionista de hotel, uma jurista. A propósito dos 200 anos da independência do Brasil, fomos falar com brasileiros que vieram para Portugal, alguns de forma definitiva, outros dividindo a vida entre cá e lá. Com diferentes profissões, idades e backgrounds, são sete pessoas que executam profissões que são ou foram exercidas por muitos outros brasileiros.

A imigração brasileira começou no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com uma classe média urbana e qualificada, composta sobretudo por dentistas, publicitários, informáticos. No início dos anos 2000, o perfil mudou: pessoas à procura de trabalho, menos qualificadas, que foram para a construção civil, comércio e restauração. Nessa altura, o factor atracção de Portugal para a classe trabalhadora era alto. Cerca de 30 mil trabalhadores não estavam regularizados.

Em 2003, houve o chamado “acordo Lula” que legalizou milhares. E com maior ou menor intensidade, o fluxo foi crescendo ao longo dos anos seguintes.
Os dados anuais do SEF mostram que em 2003 havia cerca de 26.500 brasileiros em situação regular. Em 2010, eram 119 mil. Depois verificou-se uma descida e em 2016 havia cerca de 81 mil registados.

A partir de 2019, deu-se um novo impulso, chegando-se aos 183 mil em 2021. Os últimos dados enviados pelo SEF mostram que, neste momento, há 256.200 de brasileiros em Portugal, a fatia mais significativa da população imigrante e a maior de sempre. A este quarto de milhão há que acrescentar os brasileiros que entretanto adquiriram a nacionalidade portuguesa.

Carlos Vianna, fundador da Casa do Brasil de Lisboa (a maior associação de brasileiros do país), diz que a soma de todos os brasileiros rondará os 300 mil, tendo em conta os que têm a situação legalizada, os que estão em processo de legalização e os que já são também portugueses.

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Demer Reame Nuno Alexandre

Demer Reame
“Lá sou o português, aqui sou brasileiro”

Demer Reame abre a porta de um dos seus consultórios em Lisboa, em plena estação do Oriente. Na sala onde costuma ver os pacientes, tem uma parede forrada com a imagem de uma praia paradisíaca e palmeiras. É para ali que aponta quando chegam, descreve, a sorrir.

Natural de Ibitinga, em São Paulo, Demer chegou a Portugal a 20 de Janeiro de 1996 desafiado por um amigo brasileiro dentista, que sugeriu substituí-lo durante um mês. A estadia virou casa, ele foi ficando. No país, discutia-se a polémica sobre a regularização dos dentistas brasileiros por causa das diferenças de currículo — os portugueses formavam-se como médicos dentistas e os brasileiros tinham diploma de cirurgião dentista. Havia falta de dentistas em Portugal e os brasileiros aproveitavam a oportunidade. “A vantagem era que havia muitos pacientes e pouca mão-de-obra.”

Ainda viviam poucos brasileiros no país. “A gente se reunia no fim-de-semana para jogar futebol, éramos 20 ou 30 — dez engenheiros, dez informáticos e 15 dentistas”, lembra. “Quando cheguei, comer picanha era só num sítio — hoje não.”

Demer cada vez se ia enraizando mais, confessa. Comprou casa em Cascais, casou-se com uma brasileira, advogada, teve dois filhos. Entretanto, foi estudar em Espanha. “Era 1998/99, e ninguém falava em implantes. Achava que era uma área com futuro e queria estar preparado”, afirma este dentista que se especializou em implantologia.

Um amigo montou uma clínica no Marquês de Pombal e Demer Reame juntou-se. Ali ficou até 2012, ano em que abriu o consultório onde está hoje; o negócio cresceu e, mais tarde, montou uma “filial” no mesmo prédio do Marquês de Pombal em que começou em Lisboa. Ao todo, são 11 gabinetes, um corpo clínico de 17 especialistas e 20 funcionários. Nunca sentiu discriminação contra os dentistas brasileiros. “Ouvia falar de preconceito contra os brasileiros, mas em relação aos dentistas eram poucas queixas”, sublinha.

Regressar ao Brasil está fora dos seus planos, mesmo que viver longe da família seja o “preço que se paga” pela escolha.

A sua identidade é percepcionada de forma diferente nos dois países: “Lá sou português, aqui sou brasileiro.”

Na clínica, tem empregados de várias origens, portugueses, brasileiros, são-tomenses, angolanos. “A ideia é integrar, haver troca. Se queremos crescer, tem que ter essa mistura.”

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Emanuelle Santos Nuno Alexandre

Emanuelle Santos
“Imigrante é bem-vindo” para empregos pouco qualificados

Nos últimos anos, os brasileiros têm ocupado o primeiro lugar das nacionalidades de estudantes estrangeiros. Emanuelle Santos é uma delas. Chegou em 2016 para estudar Direito. Aos 24 anos, natural de uma cidade no interior de São Paulo, diz: “O Direito tem uma vertente internacional, abre as portas para trabalhar noutro país da União Europeia.”

Teve apoio financeiro do pai, técnico de uma empresa de segurança no trabalho, e da mãe, professora no ensino secundário. Não esconde que teve dificuldade com a língua e o facto de ser brasileira, mulher e negra pesou “totalmente” na sua adaptação: “Sofri diversos casos de xenofobia, machismo dentro da universidade”, comenta (e não refere o nome da instituição porque quer fazer o mestrado e teme represálias). “De professores, a gente sente a diferenciação no tratamento — fui repreendida pela forma como escrevo em situações tão xenófobas ao ponto de um professor aceitar a prova em espanhol de um aluno de intercâmbio e reclamar do meu português.”

Portugal vende a ideia de que é “aberto aos imigrantes”, diz, as universidades “convidam” os alunos estrangeiros, mas os brasileiros “se deparam com um ensino que não aceita sequer a forma como a gente escreve”, critica. Emanuelle acredita que o país tenta fazer uma adaptação para a chegada dos imigrantes às universidades, mas a “problemática é mais profunda”: “Há um preconceito estrutural, racismo estrutural na academia.”

Vive em Lisboa desde Novembro de 2021 e, apesar de a cidade ser grande, e ter muita movimentação, há aspectos difíceis. “Recentemente, assumi o relacionamento com uma mulher brasileira, a gente sai na rua e a homofobia é todos os dias.”

Ainda não tem a certeza qual a área do Direito que vai seguir. Neste momento, está a fazer um estágio na Casa do Brasil, no gabinete de orientação e encaminhamento de imigrantes. A ideia, a longo prazo, é regressar ao Brasil para seguir a vida profissional e ingressar no sector público. Não esperava que o mercado de trabalho português fosse tão fechado, sobretudo nas profissões mais qualificadas. “O imigrante é bem-vindo para empregos que não necessitam de qualificação”, diz.

“Falo muito que não é só o Governo português que tem que criar órgãos para auxiliar os imigrantes. A sociedade no geral precisa de ter uma virada de chave na mudança de recepção dos brasileiros. Não adianta o Governo ter um programa de auxílio se o brasileiro não consegue emprego nem casa porque sofre xenofobia.”

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Antônio Grassi Nuno Ferreira Santos

Antônio Grassi
A política no Brasil acentuou a vontade de viver em Portugal

Foi secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e director do Instituto Inhotim. Actor que os portugueses reconhecem das telenovelas, Antônio Grassi mudou-se para Lisboa no ano passado com bagagens, família e “papagaio”.

Recentemente, inaugurou o Espaço Talante dentro da Livraria Ler Devagar, na Lx Factory, em Lisboa, onde não param de entrar e sair turistas com máquinas fotográficas. Tornou-se sócio da livraria e a proposta é gerir este projecto que possa “ancorar a experiência de arte contemporânea da lusofonia”.

É um regresso: em 2012/13, Antônio Grassi foi o comissário do Ano do Brasil em Portugal, e um dos eventos foi criar o Espaço Brasil na Lx Factory. Desde essa época que ficou com a ideia de um dia viver em Portugal.

“A afinidade com a experiência portuguesa deu um desejo enorme de estreitar mais relações”, conta, sentado numa mesa da livraria. “Claro que a situação no Brasil acentuou isso: vivemos um momento difícil em relação a um Governo que tem um olhar absolutamente negativo em relação à cultura e aos artistas. Estar vinculado hoje a um projecto cultural no Brasil é uma aventura dificílima” — e “foi muito mais devastador do que se anunciava”.

Isto impulsionou Antônio Grassi a emigrar. “Nunca vi a situação política ser tão decisiva em relação à vida concreta das pessoas.”

É verdade que muitos dos brasileiros que vivem em Portugal votaram no actual Presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, lembra o actor, que espera uma mudança neste aspecto.

Apesar de viver em Lisboa, mantém a ligação com o Brasil e o “sítio” que tem em Minas Gerais, bem como o apartamento no Rio de Janeiro. A ideia é conjugar a sua vinda com outros projectos no Brasil. Comparando com há dez anos, nota diferença: “Nessa altura, tínhamos a estimativa de que, no aeroporto de Lisboa, passavam milhares de brasileiros por ano, mas não saíam, só faziam escala.”

Hoje, os brasileiros chegam de avião, saem e muitos trazem malas para ficar, como ele. Acha Lisboa uma “cidade leve” e percebe que nos últimos tempos o país tenha atraído brasileiros com maior poder de compra ou artistas como ele, gente de “tecnologia, start-ups, inovação.”

Ele vê-se como imigrante? “Olho para mim como um cidadão com mais um horizonte a ser ampliado. Lisboa é a minha segunda morada.” Mas ter uma filha matriculada na escola cá já é um compromisso.

Entre amigos, comentaram-se episódios de xenofobia e racismo com brasileiros em Portugal, mas Antônio Grassi nunca passou por isso. “A minha relação com Portugal deu-se em outros parâmetros, até o facto do reconhecimento pela televisão me coloca num lugar mais privilegiado. Nunca senti xenofobia.”

De resto, a “situação de desesperança” em relação ao Brasil conta como factor de atracção. Acredita que o tipo de imigração brasileira actual pode vir a mudar se mudar o Governo brasileiro. “Pode até ter gente que fica, mas acho que haverá uma renovação de esperança” se Lula da Silva ou outro candidato que “apresente esperança” ganhar.

Ellen Lima
"A ignorância de Portugal sobre os indígenas"

A conversa por Zoom entre Braga e Lisboa começa pela biografia: com 35 anos, está há dois anos a viver em Portugal e a tirar um doutoramento em Modernidades Comparadas, Literaturas, Artes e Culturas na Universidade do Minho. Apresentando-se: é poeta, escritora, indígena, Wassu Cocal, povo que habita a mata de Alagoas, no Nordeste do Brasil. O pai emigrou para o Rio de Janeiro, onde conheceu a mãe.

Ellen cresceu na periferia do Rio de Janeiro, sabendo que era indígena mas não o afirmando, depois de um período em que a mãe tentou viver no território indígena sem que se tenha adaptado. Mais tarde, envolveu-se no movimento indígena e desde há cinco anos que faz “militância”.

A experiência de ser imigrante é “bastante difícil no sentido prático”, sublinha. “No meu caso, ainda é mais porque trazer questões indígenas é delicado.” Há muita ignorânica sobre os povos indígenas e “Portugal não reconhece a sua responsabilidade histórica em relação à colonização brasileira e aos povos indígenas”.

A sua saída do Brasil deve-se à eleição de Bolsonaro. Professora no ensino público durante dez anos, refere que a partir desse momento começou uma “vigia ideológica” — “não pode dizer o que você pensa”.

Agora, mesmo que perca as eleições, Ellen não planeia regressar porque sente que tem trabalho para fazer em Portugal. Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), acha que a academia portuguesa e brasileira são diferentes e que em Portugal o debate decorre devagar: “A mentalidade do orgulho colonial que está enraizada e se mostra em todos os cantos desse país” é uma das coisas mais desafiadoras.

Considera que os estudantes brasileiros têm trazido “muito” às universidades portuguesas: “Um corpo que se desloca de um país colonizado em direcção à sua antiga metrópole reivindicando espaço, memória e respeito, causa muito incómodo, porque historicamente a nossa posição foi de subalternidade.”

“Estamos incomodando porque existem feridas ancestrais que necessitam de fala, exposição, cuidado, reparação e cura. Vim buscar reparação e cura. E Portugal nos deve isso. A diferença é que, ao contrário dos colonizadores, não estamos forçando nem violentando ninguém. Estamos, a duras penas, tentando construir espaços honestos de diálogo nesse país.”

A presença da imigração brasileira “tensiona e pressiona”, continua: “Não dá mais para fingir que não existe esta relação assimétrica na mente de muitos portugueses e que está ligada à ideia de subalternização.”

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Cissa Batista é cuidadora desde 2017 Nuno Alexandre

Cissa Batista
Agarrou o primeiro emprego de cuidadora: “Peguei amor pela profissão”

Natural de Espírito Santo, perto do Rio de Janeiro, Cissa Batista tinha planos de vir para Portugal com o filho, hoje com 14 anos, e o então marido. Acabou por vir sozinha. O filho nunca quis juntar-se. Cissa regressa todos os anos para o visitar.

Em Portugal, só conhecia uma amiga, com quem ficou nos primeiros tempos. Contabilista, tentou vários trabalhos na área, fez várias formações, foi a mais de dez entrevistas, mas nunca a contrataram. “Não tem experiência”, dizem. “Portugal é um país muito acolhedor, mas tem preconceito. Trabalhos mais baixos, como cuidadora, limpeza, é aberto para todos. Outros não.” Optou então pela profissão de cuidadora, que exerce desde praticamente que chegou, em 2017. Trabalhou para várias empresas, chegou a ser interna durante mais de um ano. Agora está, como independente, a cuidar de uma idosa das 9h às 18h. “Peguei amor pela profissão.”

Esteve ligada a várias empresas, começou por cobrir folgas de outros. Para quem acaba de chegar, compensa ser interna. “É um trabalho inicial, que as portuguesas não gostam de fazer, por isso tem tanta saída.”

Está em 120 grupos do WhatsApp. “Tenho seis grupos de cuidadores e cada grupo tem 250 pessoas. O meu telefone está sempre a vibrar, a vibrar”, afirma. É por esta via que começam muitos daqueles que chegam. Não esconde que o trabalho de cuidadora é difícil. Uma vez foi alvo de tentativa de abuso pelo filho de uma idosa de quem cuidava. Relatou à empresa o que tinha acontecido; a neta da idosa não quis pagar à empresa: “Ainda foi dizer que dei motivo para o pai abusar, porque sou brasileira.”

Ser mulher, imigrante, brasileira em Portugal é “muito difícil”, e sobretudo com mulheres, defende. “O preconceito é maior. Eu sinto falta da amizade feminina.”

A língua, a segurança, a tranquilidade é o que atrai os brasileiros, acredita. No Brasil, as pessoas têm medo de sair de casa e serem assaltadas. “As pessoas querem fugir da violência.” Por isso, mesmo com os preconceitos que existem em relação aos brasileiros, continua a valer a pena e o objectivo é ficar. “Escolhi Portugal para viver, é a minha casa.” O sonho é que o filho venha viver com ela. Já o tentou convencer a vir de férias, mas sem sucesso. No dia em que a encontrámos, era o aniversário dele. “O Natal e o aniversário são os que mais me custam”, desabafa.

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Claudio Haddad dr

Claudio Haddad
O que atrai os brasileiros é “a qualidade de vida”

Em Junho de 2021, noticiava-se que a Universidade Nova SBE, a Fundação Alfredo de Sousa e a Fundação Haddad tinham acabado de celebrar “uma parceria assente na maior doação jamais feita em Portugal para um instituto de empreendedorismo”.

Fundador do Insper — Instituto de Ensino e Pesquisa, empresário, o homem à frente da fundação com o seu apelido, Claudio Haddad, 75 anos, e um dos rostos dessa parceria, comprara um apartamento em Lisboa em 2014 com a ideia de com a mulher passar umas temporadas na cidade, aproveitando as facilidades do “visto gold” e a possibilidade de ter autorização de residência.

O objectivo não era investir em Portugal, mas fazer do país base para os investimentos. Em início de 2019, contudo, acabaria por passar a sua residência fiscal para Portugal e neste momento divide o tempo entre Lisboa — onde vive pelo menos seis meses por ano — e São Paulo, onde tem duas filhas e netos. “A qualidade de vida é boa”, diz, durante uma conversa por Zoom a partir do Brasil. “Gosto de Portugal, de andar na rua. As pessoas são gentis, come-se e bebe-se bem. Está a duas horas de voo de outras cidades da Europa.”

O também ex-presidente do banco Garantia mudou para Lisboa a sede da sua empresa KPX — Consultoria de Investimento, onde tem quatro funcionários, uma delas portuguesa (três vieram do Brasil).Um dos investimentos que fará em breve será na compra de uma empresa no Porto, que não quis revelar.

Acha que a imagem de Portugal no Brasil tem mudado. “Há 30/40 anos, era bastante diferente”, afirma. “Estou muito bem impressionado com algumas coisas em Portugal. O esforço que foi feito com a educação é extraordinário, hoje praticamente todos os jovens falam inglês, há uns anos não se via”, afirma. Nota “uma diferença de gerações”, com os jovens “mais internacionais. Sobre a recepção dos portugueses, tem-se sentido acolhido.

O que acha que atrai os brasileiros? A “qualidade de vida”. “Tem a mesma cultura, a mesma língua — embora com sotaque diferente e palavras que os brasileiros não conhecem. Mas é um ambiente superagradável.”

Para muitos, sublinha, Portugal é também sinal de segurança. Só “a burocracia é que é um problema”, comenta, referindo-se aos atrasos nas renovações vistos.
Quando perguntamos se se sente um imigrante, responde: “Me sinto residente. Com a covid, ficámos um pouco privados da vida social, agora estamos a tentar recuperar. Não temos uma vida social como em São Paulo”, explica.

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Priscila Alves Paulo Pimenta

Priscila Alves
Ouviu muitas vezes “volta para a tua terra”: “Hoje, respondo”

Priscila Alves, 34 anos, que vive em Portugal há quatro, passou por inúmeros trabalhos como tantos brasileiros. Foi cuidadora, trabalhou num call center, em alojamento local, como baby-sitter. Quando partiu do Brasil, não era para emigrar: “Não trazia roupa, nem dinheiro.”

Actualmente recepcionista de um hotel no Porto, onde vive, veio para fazer um intercâmbio num lar de idosos em Roriz de Barcelos. A ideia inicial era tirar um ano sabático do trabalho, depois de um período difícil por causa da violência e dos assaltos.

O primeiro trabalho foi em casa de uma idosa como interna no Porto. O salário de 800 euros era atractivo, mas “era muita pressão psicológica”. “Não podia sair do apartamento. Era muito controlada.”

Entretanto, inscreveu-se numa empresa de apoio domiciliário, mas o valor prometido, de 3,5 euros à hora, não tinha nada que ver com os 1,96 euros que pagaram.
Seguiu-se uma altura em que fazia trabalhos como baby-sitter; arranjou cinco crianças e “segurou as pontas” até ir para um hotel no Algarve, com contrato como recepcionista durante três meses. Voltou para o Porto, trabalhou num outro hotel, ao mesmo tempo que fazia uns extras como baby-sitter.

Entretanto, foi fazendo outros trabalhos, entre eles, num call center — que “parecia um trabalho leve”, mas “a experiência foi horrível”, por causa dos clientes. Há quatro meses que está de novo num hotel, no Porto, como recepcionista. Arrenda um T0 na cidade, que “leva 80% do meu salário”: “Estou sobrevivendo”, diz.

Sofreu um episódio de xenofobia num hotel em que trabalhou, chegou a ir à polícia apresentar queixa, mas ninguém se quis envolver e ficou sem testemunhas. “Não foi nem uma nem duas vezes que ouvi: ‘Volta para a tua terra.’ Antes, ficava calada; hoje, respondo.”

A discriminação acontece frequentemente, diz, incluindo no arrendamento da casa, para a qual foi preciso ser o namorado a apresentar-se.

Apesar de tudo isto, “ainda vale a pena” viver em Portugal. “Não há nada que pague a liberdade da gente. Lá [Brasil] quem vive encarcerado não são os bandidos. O meu condomínio era todo cercado, tem um muro, porteiro. Os vigiados somos nós.”

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