A quebra

Teremos o pior dos dois mundos com uma quebra no sistema de saúde, agravamento de desigualdades e ineficiências. Um sistema beveridgiano em ruptura assemelha-se ao actual sistema norte-americano de saúde, que a maioria dos portugueses e os partidos com representação parlamentar, de forma sapiente, não querem.

A criação do Serviço Nacional de Saúde em 1979 tinha subjacente os princípios da universalidade de acesso com a salvaguarda da qualidade de prestação. De forma indissociável, assistiu-se à criação das carreiras médicas. Uma forma de valorização, avaliação e progressão destes profissionais dentro de serviços que funcionavam como escolas de formação e de entreajuda de resposta aos vários desafios de prestação de serviços. Os concursos de progressão nas carreiras foram sendo progressivamente reduzidos e adiados. A perspectiva de progressão é pequena e instala-se a desmotivação, sobretudo quando comparadas com perspectivas de exercício privado ou a emigração.

O documento “Global Strategy on Human Resources for Health: Workforce 2030” prevê uma escassez de 18 milhões de profissionais de saúde até 2030. É urgente perceber o que Peter Drucker apontava já na década de 60: a mobilidade destes profissionais (entre outros) implica que uma instituição de saúde no interior do país não está apenas a “concorrer” com uma do litoral, mas sim com instituições de outros países. A procura destes recursos qualificados minimizará qualquer tentativa de implementação de obrigatoriedade de permanência no SNS nas atuais condições.

A própria ideia de obrigar um profissional a permanecer no SNS provém da falácia de que os médicos internos não trabalham de forma tão ou mais intensa que os especialistas. Errado. Muitas vezes são eles que seguram os serviços. Talvez até seja por essa importância que ocorre outra falácia contraditória: o repetido anúncio de contratação de médicos que já estavam no SNS. Em anúncios políticos estamos habituados ao anúncio de contratações das mesmas pessoas três vezes: quando entram na formação geral do internato médico, quando entram na especialidade e, finalmente, como recém-especialistas, se optarem pela continuação no SNS.

No meio deste processo e de saídas do SNS, acumula-se a bola de neve de incapacidade de transmissão do saber. Será progressivo o maior papel dos hospitais privados na formação se quisermos continuar a maximizar a capacidade formativa do país, ainda que com possível enviesamento de casuística por menor contacto com estratos socioeconómicos mais baixos, onde se acumula sistematicamente maior morbilidade. A esses, o público continuará a acudir, dentro do possível. A qualidade de formação e o valor das especialidades será menor. A tentativa de desvalorização do factor trabalho pela formação em massa e com menor diferenciação terá impactos negativos no médio prazo.

É difícil acreditar que não é conscientemente que pessoas com responsabilidades políticas e públicas disfarçam essas realidades, seja com escolha enviesada de dados, seja com propaganda. Desqualificar publicamente a Medicina Geral e Familiar, especialidade que permitiu consolidar os cuidados de saúde primários, é só mais um passo na ruptura.

No meio disto, temos também uma rede de serviços de Saúde Pública, com responsabilidades múltiplas, incluindo na promoção da saúde e na prevenção da doença, com uma reforma suspensa e sem visão para o futuro. A sua devida dotação, considerando a ínfima despesa alocada, poderia também produzir ganhos em saúde de forma sustentada. No entanto, poderíamos e deveríamos alocar maiores responsabilidades em termos de gestão a essas unidades, focando a sua missão e aproveitando competências. A demorada resolução da situação das Juntas Médicas de Avaliação de Incapacidade, fora do âmbito destes serviços, é mais um exemplo das ineficiências a necessitar de reorganização, não só da Saúde, como também da Segurança Social. Serve também o tema para o aviso de que não é prudente o aumento de financiamento sem pensamento estratégico e resolução de ineficiências evidentes.

Podemos criticar o SNS em várias vertentes. Razões fundamentais para o actual estado de situação são fatores como o desinvestimento/vulnerabilidades estruturais, a falta de instrumentos de gestão (aliás, potenciada por alguma incapacidade e contextos impossíveis em níveis intermédios) e o subfinanciamento crónico. Na inflexibilidade da gestão de recursos humanos, somam-se histórias de especialistas altamente qualificados que, perante recusa de horário parcial, saíram. Saber perdido, menor formação. Metade é melhor do que zero, menos para quem toma decisões inflexíveis. Não existe outra solução estrutural que não seja a revisão da grelha salarial para os profissionais de saúde e melhor gestão, que só será possível com maior autonomia local, devidamente capacitada e responsabilizada por estes erros cruciais.

A responsabilidade de manter portas abertas para o público é fundamental e a acumulação de episódios em áreas tão sensíveis como a obstetrícia continuará a erodir a confiança. Soma-se a esta situação a perpetuação de desigualdades territoriais, ainda potencialmente agravadas por uma liberdade de escolha sem assegurar o devido acesso a quem não suporta custos indirectos, nomeadamente distâncias a percorrer e custos de permanência longe de casa.

A regulação, tão pouco valorizada em termos mediáticos e, talvez consequentemente, em termos políticos, será cada vez mais importante num país em que o número de portugueses com seguro aparenta continuar a aumentar. Aliás, a fragilidade atual da regulação deveria ser um forte aviso de prudência para quem defende maior alocação de meios para a saúde privada sem a devida reformulação da regulação.

No horizonte, e já com um pé nesse território, já se vê um sistema de saúde partido em dois em que o SNS fica como recurso, preservando respostas a situações mais graves, tão dispendiosas que não têm interesse para o mercado privado ou quando se acabar o plafond do seguro. A responsabilidade de manter portas abertas, 24 horas por dia, 7 dias por semana será cada vez mais difícil de manter dentro da exigência do carácter universal geográfico de acesso. Ainda fora da cobertura do SNS e de seguros, a despesa out-of-pocket das famílias portuguesas continua a aumentar, o que deve ser considerado um dos maiores alertas de disfunção.

Teremos o pior dos dois mundos com uma quebra no sistema de saúde, agravamento de desigualdades e ineficiências. Um sistema beveridgiano em ruptura assemelha-se ao actual sistema norte-americano de saúde, cuja maioria dos portugueses e os partidos com representação parlamentar, de forma sapiente, não querem. Importantes chamadas de atenção sucedem-se, vindas também de pessoas que desempenharam funções governativas sob o partido com o poder e a consequente responsabilidade neste momento. A mudança pode ser revestida de vários formatos e cores partidárias, mas há uma necessidade inequívoca de ímpeto reformista.

Indiferentes a cores partidárias, não ver os factos actuais corresponderá a graves danos no sistema de saúde e no tecido social do país, com o pilar da solidariedade na saúde a ser fortemente erodido. Existe a necessidade natural de esperança mas fica a dúvida de quão recuperável é a quebra que já está à vista, ou quantos mais danos serão necessários para um horizonte diferente.

Médicos especialistas em Saúde Pública

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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