O anti anti-racismo legitima o racismo

Apelidar de “daninha” ou de “mofo antidemocrático” uma denúncia anti-racista não é uma forma democrática de encarar o dissenso no debate público, nem tem nada a ver com liberdade, seja de expressão ou de juízo crítico. É só chauvinismo.

Em resposta ao editorial do PÚBLICO de 9 de Janeiro de 2022, queremos reiterar que rejeitamos a caracterização do debate sobre a rejeição da candidatura da artista Grada Kilomba e do comissário Bruno Leitão para a 59.ª Bienal de Veneza (2022) como um conflito entre fundamentalismo ideológico e liberdade de juízo crítico. A liberdade que o editorial do PÚBLICO reclama é, não só limitada, como limita: é a liberdade de uns à custa da liberdade de outros. É a liberdade do jurado Nuno Crespo exercer o seu “juízo crítico” à custa do direito de Grada Kilomba a uma avaliação justa e imparcial da sua candidatura. É a liberdade duma dita “saudável liberdade de expressão” que não hesita em apelidar de “daninha” a expressão que discorda deste consenso sem, por um breve momento, reflectir na imensa contradição que os seus argumentos implicam. E se não estamos perante um status quo racista quando vozes exclusivamente brancas monopolizam uma discussão sobre racismo nos media, como classificar este estado de coisas?

O uso do termo racismo para classificar a decisão do júri só é leviano para quem insiste numa visão extraordinariamente redutora do que constitui o racismo, uma visão que recusa reconhecer que o racismo implica juízos de gosto e preferências ditas subjectivas, mas que, na verdade, estão longe de o ser. É, portanto, impossível ter uma discussão séria sobre o significado e o impacto da racialização na vida das pessoas negras se não estivermos dispostos a reconhecer que a identidade branca, enquanto beneficiária de legados coloniais tanto materiais como simbólicos, está envolvida nesse processo.

É por isso que esta discussão também implica um conflito entre diferentes conceitos de democracia: para nós é incompatível com “abertura” e com “a pluralidade de visões sobre o país e o mundo,” que este jornal afirma defender, que nas suas páginas se celebre, tanto o afastamento de Grada Kilomba da Bienal de Veneza como o afastamento de Joacine Katar Moreira do Parlamento, como vitórias duma liberdade plural e democrática – menos inclusão é sinónimo de menos democracia. É por isso que também rejeitamos a caracterização de quem se bate por mais inclusão social e, portanto, por mais participação democrática, como vozes “sectárias”. Não será antes sectário o tipo de discurso que exclui e suprime as vozes que o contestam?

O caudal noticioso contra o anti-racismo, produzido no PÚBLICO em torno deste caso, reverbera para um anti anti-racismo que se vai consolidando no espaço de opinião do jornal. A falácia de uma excepcionalidade lusitana, a romantização da ocupação colonial e dos crimes cometidos em seu nome, impedem a elite portuguesa de confrontar a questão racial como linha demarcadora de diferenciação e estratificação sociais. Apelidar de “daninha” ou de “mofo antidemocrático” uma denúncia anti-racista não é uma forma democrática de encarar o dissenso no debate público, nem tem nada a ver com liberdade, seja de expressão ou de juízo crítico. É só chauvinismo.

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