A insustentável leveza da precariedade na Ciência

É nesta precariedade que assentam os pilares da estratégia para a Ciência em Portugal: um modelo baseado em projetos de curta duração, de preferência com resultados pronto-a-consumir, limitando a autonomia e a participação na vida democrática das instituições dos que, na prática, são os principais responsáveis pela investigação científica.

O crescimento dos indicadores de produtividade e os avanços registados nos diversos domínios científicos nos últimos anos têm revelado o desenvolvimento do sistema científico e tecnológico. Um êxito construído com o trabalho árduo de milhares de investigadores maioritariamente com vínculos precários e que, ao longo de décadas, têm vindo a desenvolver as suas atividades alternando entre contratos de bolsa, contratos de trabalho a prazo, vínculos pontuais e períodos em que continuam a trabalhar sem qualquer remuneração. É nesta precariedade que assentam os pilares da estratégia para a Ciência em Portugal: um modelo baseado em projetos de curta duração, de preferência com resultados pronto-a-consumir, que reproduz as estruturas de poder vigentes sem as questionar, limitando a autonomia e a participação na vida democrática das instituições dos que, na prática, são os principais responsáveis pela investigação científica. São estes que continuam a desenvolver o seu trabalho apesar da incerteza, apesar da instabilidade e apesar do subfinanciamento crónicos para onde são (somos) relegados. Apesar deste contexto, cresce o reconhecimento social da Ciência e dos cientistas, um reconhecimento sedimentado, mais recentemente, no papel crucial da investigação e dos investigadores na atual situação pandémica, um reconhecimento inversamente proporcional aos esforços institucionais para a criação de condições laborais justas.

A este respeito, desde 2015 o Governo faz do “estímulo ao emprego científico” a sua grande bandeira. Contudo, se esta opção política melhorou as condições laborais de doutorados, possibilitando que alguns acedessem a um contrato de trabalho a prazo por oposição às malfadadas bolsas de pós-doutoramento (que, ainda assim, continuam a existir), não configura um efetivo e consequente combate à precariedade, nem aos seus impactos no trabalho e nas vidas daqueles que permanecem, ano após ano, ameaçados com a possibilidade de desemprego. Esta Ciência de curta duração encontra expressão clara, por exemplo, nos três concursos individuais de estímulo ao emprego científico (CEEC-IND) com cerca de 90% dos doutorados excluídos; num concurso institucional (CEEC-INST) que atribuiu 40,8% de contratos a prazo, 46,6% para o ingresso na carreira docente e apenas 12,6% para entrada na carreira de investigação científica ou, de uma forma ainda mais clara, num programa de combate à precariedade (Prevpap) que excluiu 87% dos investigadores e que se tem arrastado de forma inaceitável para os poucos propostos para integração na carreira de investigação científica.

A estas flagrantes insuficiências na contratação de doutorados acresce uma revisão do Estatuto do Bolseiro de Investigação, em 2019, sem consulta das associações e sindicatos representativos do sector, que, não tendo sido acompanhada por um mecanismo de incentivo à contratação, conduziu a um conjunto de problemas acrescidos para os trabalhadores científicos. Por um lado, extinguiram-se as bolsas de gestão de ciência e tecnologia e as bolsas de técnico de investigação, sem que os profissionais que usufruíam dessas bolsas tivessem quaisquer perspetivas de integração na carreira. Por outro, impõe-se agora uma “formação institucionalizada” como condição de atribuição das bolsas, o que, na prática, tem conduzido a que muitos bolseiros de investigação se vejam obrigados a pagar as propinas de diferentes tipologias de cursos.

Adicionalmente, e porque a investigação tem custos que excedem o pagamento de salários e que não estão previstos nem no financiamento das instituições, nem no financiamento dos recursos humanos (contratados ao abrigo do “estímulo ao emprego científico”, bolsas e quejandos), os investigadores vêem-se obrigados, repetidamente, a competir pelos fundos disponibilizados para o desenvolvimento de projetos de investigação. São estes concursos que, ao financiarem, por exemplo, material e reagentes laboratoriais, computadores e respetivo software, permitem que a investigação efetivamente se desenvolva. Acontece que estes concursos têm sido escassos (nos últimos anos tivemos um concurso em 2017 e outro apenas em 2020) e as taxas de exclusão esmagadoras (65% e 95%, respetivamente). Nestes concursos, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) tem vindo, de forma cada vez mais criativa, a socorrer-se de artefactos para aumentar as taxas de aprovação, procurando diminuir o número de candidaturas admitidas ou consideradas válidas. É o que se passa no concurso atualmente aberto, um concurso cuja dotação orçamental é similar à do concurso de 2020, a saber, 75 milhões de euros. Tal como no ano passado, o ano em que 95% das candidaturas não tiveram sucesso, este valor será uma vez mais claramente insuficiente para responder às exigências que se impõem para o avanço científico em todas as áreas do conhecimento. Façamos as contas, pese embora toda a criatividade da FCT, estes 75 milhões apenas permitirão financiar cerca de 540 projetos, dos quais cerca de 300 serão projetos exploratórios.

Um modelo de Ciência, como o atual, unicamente baseado em projetos competitivos e vínculos laborais precários, está esgotado e não permitirá que a investigação científica em Portugal avance no sentido de criar alicerces robustos para uma sociedade justa e igualitária. Isto é particularmente patente no atual momento pandémico, que impossibilita o regular decurso de projetos e agrava diversos problemas das vidas dos trabalhadores e, em maior escala, das trabalhadoras científicas. Não nos esqueçamos que os vínculos precários destes investigadores implicam uma menor proteção ou mesmo exclusão dos apoios governamentais atualmente em curso. Se o momento atual exige medidas integradas e sistémicas de resposta às perturbações decorrentes da pandemia, também se impõem medidas de real combate à precariedade na Ciência, promovendo o fim das bolsas de investigação científica e a integração dos investigadores, técnicos de laboratório e gestores e comunicadores de ciência em lugares permanentes de carreira. Este caminho implica não só um reforço e articulação do investimento público em pessoas, projetos e instituições, mas, acima de tudo, uma alteração do paradigma da “investigação à la carte”, pronta num estalar de dedos e desenvolvida pelo investigador precarizado do momento, por uma Ciência com o tempo e a profundidade que a produção de conhecimento sustentado implica.

A insustentável leveza da precariedade na investigação científica tem o peso do cimento que o ministro Manuel Heitor diz querer substituir por conhecimento. Mas a caminhada para essa substituição jamais poderá ser feita através da cimentação da precariedade enquanto base estruturante da política pública para a Ciência.

Ana Ferreira, Investigadora (CICS.NOVA, NOVA FCSH) e dirigente do SPGL/Fenprof
Ana Margarida Ricardo, Investigadora (IST-ID) e dirigente do SPGL/Fenprof
André Carmo, Professor universitário (ECT-UÉvora) e dirigente do SPGL/Fenprof
Bárbara Carvalho, Investigadora com bolsa (NOVA FCSH) e dirigente da ABIC
Margarida Ferreira, Técnica assessora do SPGL/Fenprof​
Maria João Antunes, Investigadora com bolsa (FPCEUP) e dirigente da ABIC

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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