As jovens das comunidades afectadas pela mutilação genital feminina estão a tomar a palavra

“Tentar mudar uma cultura é um trabalho difícil”, mas um grupo de raparigas de vários países europeus quer contribuir para que a mutilação genital feminina deixe de fazer parte da tradição. Esta quarta-feira, é apresentado em Portugal o “Manifesto de envolvimento de jovens”.

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Luísa Ferreira/Arquivo

Ser jovem imigrante na Europa traz conflitos difíceis de resolver. Há uma certa “ambiguidade” por pertencer simultaneamente a comunidades distintas. No caso das jovens das comunidades afectadas pela mutilação genital feminina (MGF), em particular, o conflito é mais delicado: por um lado, nasceram em comunidades onde o corte genital ainda é uma realidade; por outro, cresceram em países onde se condena (e criminaliza) a prática, que muitas delas também passam a rejeitar. Como encontrar o equilíbrio sem arrancar raízes?

Estas raparigas querem tomar a palavra para poderem falar tanto para dentro como para fora das comunidades. “Não só porque nós, por sermos jovens, temos ideias renovadas, mas também porque vimos destas comunidades, e ninguém melhor do que nós para explicarmos aquilo que se passa”, explica ao P3 Fatu Banora, de 20 anos.

Esta quinta-feira, 15 de Julho, Fatu Banora estará com Ana Aua Só a falar sobre envolvimento juvenil no combate à MGF. Ambas fazem parte da rede de embaixadoras da juventude da organização EndFGM European Network, que junta raparigas que vivem em comunidades afectadas pela prática em países como França, Bélgica, Holanda e Reino Unido. Além de um workshop sobre a importância do envolvimento de jovens no combate à Mutilação Genital Feminina, organizado com o apoio da Associação para o Planeamento Familiar (APF) e da EndFGM, é também altura para o lançamento da versão portuguesa do “Manifesto de envolvimento de jovens”, que propõe estratégias para o envolvimento eficaz de jovens de comunidades afectadas pela MGF. 

Fatu nasceu na Guiné-Bissau, numa comunidade com pessoas pertencentes à etnia mandinga, que pratica o ritual do “fanado”, mas também balanta, como é o caso da mãe. Veio para Portugal com oito anos. Hoje, aos 20, tenta ajudar a sua comunidade a compreender os riscos da prática para a saúde de meninas e mulheres. A amiga Ana Só, também com 20 anos, foi a primeira rapariga da família que não foi submetida à MGF, graças à resistência da mãe. Este activismo não está livre de conflitos, com acusações de se deixar influenciar pela cultura europeia. As raparigas e mulheres que falam contra a prática são constantemente questionadas; muitas têm familiares que deixam de falar com elas. É preciso estar sempre a recordar que “o que queremos é proteger as meninas”, diz Fatu. “É uma luta em que vamos sempre perder alguma coisa.”

Tradição não tem que ferir

Em algumas culturas, o corte genital das mulheres é considerado um rito de passagem à vida adulta, um pré-requisito para o casamento. É uma prática realizada há séculos, perpetuada pela forte ligação à tradição. “A MGF é feita porque a pessoa acredita que a mulher tem que estar pura para o marido”, descreve a jovem estudante. Entra aqui a importância de envolver os homens nesta luta, para que também eles defendam que, “para a mulher estar pura, não tem que passar pela MGF”. “Temos sorte de ter rapazes ao nosso lado”, nota a estudante, que também faz parte da Associação de Estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa (AEGBL).

O estudo mais recente sobre mutilação genital feminina em Portugal, publicado pelo Observatório Nacional de Violência e Género em 2015, estima que residam em Portugal mais de 6500 mulheres com 15 ou mais anos que já tenham sido vítimas de mutilação genital, e cerca de 1830 meninas com menos de 15 anos já teriam sido submetidas a esta prática ou estariam em risco de o ser. O maior número são mulheres de famílias oriundas da Guiné-Bissau, país onde duas em cada cinco mulheres foram submetidas ao “fanado”, mas também continuam em risco imigrantes da Guiné Conacri ou Egipto (países onde mais de 90% das mulheres são submetidas ao corte).

Nestas comunidades, muitas vezes fechadas, as jovens tentam dialogar com as pessoas mais velhas, mais ligadas à tradição, muitas das quais “acreditam que isto faz bem às mulheres”. “Quando alguém de fora vem mostrar que aquela prática não é benéfica, dizem que não sabem do que estão a falar.” Muitas mulheres vivem com as consequências do corte, mas nem todas as pessoas associam essas consequências à MGF, em muitos casos por falta de informação. É preciso quebrar o tabu. “As mulheres não expõem essa angústia”, nota Fatu, que defende ser preciso abrir o diálogo para as mulheres poderem dizer que “isto não faz bem”.

A mudança tem que partir de dentro, mas não acontece de um dia para o outro. “Estamos a falar de cultura. Tentar mudar uma cultura é um trabalho difícil.”

Os problemas não existem apenas dentro da comunidade. À medida que as jovens crescem e se integram em contextos mais diversos, os grupos de fora da comunidade começam a perceber que essas práticas existem e os estereótipos começam a funcionar. A jovem “pode acabar por ser excluída por pertencer àquela comunidade”, independentemente de ter sido ou não sujeita à mutilação genital feminina. 

EndFGM

Ana Aua Só e Fatu Banora fazem parte do grupo de embaixadoras da juventude da organização EndFGM European Network, que tem organizado encontros ao longo dos últimos dois anos em Bruxelas. Há cerca de um mês, lançaram um canal do YouTube: The Purple Chair (a “cadeira lilás”), onde falam sobre a prática. Entre os vídeos já publicados estão “O que fazer e não fazer ao falar de MGF” e “Como procurar apoio”. 

Outra parte do trabalho passa pelo apoio a alguns problemas do dia-a-dia. Por exemplo, o risco de infecções é maior para meninas submetidas ao corte, o que torna importante uma higiene cuidada. E, já que “há muitas meninas que não sabem como lidar com a higiene”, uma das primeiras actividades promovidas por Fatu e Ana foi um workshop sobre o tema, aberto a raparigas de outras comunidades, que contou com a orientação de um ginecologista da comunidade guineense.

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Fatu Banora e Ana Só com a activista Jaha Dukureh, da Gâmbia, embaixadora regional da ONU Mulheres para África DR

Fatu e Ana também publicaram, no canal da APF, um vídeo sobre como falar da MGF. Sugerem pequenas mudanças na linguagem: por exemplo, ao invés de falar em comunidades que praticam, falar em “comunidades afectadas pela prática” — e, assim, incluir também as pessoas que lutam para que o corte deixe de fazer parte da tradição.

Fatu Banora lamenta a “falta de empatia quando se fala sobre MGF”. “A maior parte das pessoas tende a estigmatizar”, alerta. “É uma prática horrível, sim. É horrorosa, sim. Mas temos que encontrar formas de abordar o tema sem sermos apenas condenadores.”

Para as jovens que trabalham a partir de dentro das comunidades, o diálogo passa por “não julgar, não apontar o dedo”. Conversar sobre estes temas implica tratar as pessoas com respeito. “Não de aceitação, claro, mas passa pela compreensão, perceber o que é que motiva aquelas pessoas a manter a prática, esclarecer o que motivou o início desta tradição.” Ao contrário do que muitos ainda defendem, vários líderes religiosos declararam fatwas (condenações) contra esta prática, deixando claro que o Corão não diz que esta deve ser feita. Fatu reitera: “Queremos mostrar outro caminho, que é possível manter a cultura e a tradição sem cortar as raparigas. Existem outras formas de manter a tradição.”

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