O que compraram os portugueses em isolamento? Menos telemóveis, mais máquinas de fazer pão

A pandemia da covid-19 obrigou os portugueses a mudarem significativamente os hábitos, com cremes para pele, telemóveis e livros a ficarem na prateleira em prol de novos portáteis, congeladores e bens de consumo essenciais.

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A prioridade foi para produtos como leite, fruta fresca, congelados, e latas de conserva Rui Gaudencio

Os hábitos, prioridades e rotinas dos portugueses mudaram muito desde o começo de Março e as compras que fizeram — e como as fizeram — mostram-no. Regra geral, as pessoas preferiram ir menos vezes ao supermercado, comprar mais online e levar mais coisas de cada vez: no topo da lista, a prioridade foi para produtos como leite, fruta fresca, congelados, latas de conserva, mas também chá e café. Na prateleira, ficaram cremes para pele, produtos de hidratação corporal, máscaras e perfumes.

A venda de telemóveis e livros caiu a pique, mas compraram-se mais produtos de desenho para os mais novos, equipamento de exercício físico e máquinas de café. Os dados são de empresas de análise de mercado como Kantar Worldpanel, Nielsen e GfK, que têm acompanhado as alterações nos hábitos de consumo dos portugueses durante a pandemia.

Não se sabe até quando irão durar as mudanças. “É difícil fazer previsões porque nunca vivemos uma situação semelhante”, explica ao PÚBLICO Carlos Figueiredo, director de negócios da Gfk, ressalvando que “alguns dos produtos em que se reportam maiores subidas, têm que ver com necessidades pontuais” e irão voltar ao normal.

Tecnologia ganhou com ensino à distância

Abril foi bom para o mercado da tecnologia, em particular para os ratos, portáteis, teclados e monitores. Depois de uma queda de 20% durante o primeiro mês de isolamento social, a procura de bens tecnológicos aumentou significativamente na semana de 13 de Abril (valor 48,3% superior ao mesmo período em 2019) de acordo com dados da Gfk, data que coincidiu com o regresso às aulas num formato à distância. Muitos dos equipamentos foram comprados online.

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As aulas online levaram muitas famílias a investir em portáteis, ratos, teclados e monitores Daniel Rocha

“O online é a grande novidade e tem ajudado os mercados a não caírem tanto”, destaca Carlos Figueiredo. Antes da declaração do primeiro estado de emergência, apenas 8% das compras de bens tecnológicos eram feitas online. Na semana de 12 a 16 de Abril, o valor subiu para 30%. “A situação actual tem dado uma motivação extra para pessoas que não tinham por hábito comprar online”, nota Figueiredo, que acredita que “nos próximos meses, se não mesmo anos, as pessoas terão outras cautelas e sempre que puderem evitar um contacto mais próximo farão isso”.

Desde o começo das medidas de isolamento social que a SIBS, que gere a rede multibanco (usada por 95% dos portugueses), também tem registado um aumento nas compras online em geral. Os sectores onde ser vê um maior crescimento face ao período antes da pandemia são o do entretenimento, cultura e subscrições (mais 57%), o da restauração e take away (mais 53%) e o do comércio alimentar e retalho (mais 44%).

Passadeiras entre produtos mais procurados

Na nova realidade, também se tem observado apelo por “produtos de nicho” como máquinas de fazer pão e outro equipamento de cozinha. É um facto que coincide com uma procura maior por “doces e produtos para confeccionar doces” nos supermercados, detectada pela empresa de estudos de mercado Kantar Worldpanel, que justifica as mudanças como um mecanismo de adaptação dos portugueses numa altura em que estão “privados de momentos de lazer e de socialização no exterior”.

Outros produtos com uma procura fora do normal nesta época, tanto em Portugal como lá fora, são colchões de ioga, bicicletas e passadeiras estáticas e halteres, com o equipamento de ginásio entre as novas tendências de consumo mundiais, de acordo com dados da analista Research and Markets. 

Em Março, a plataforma de comparação de preços portuguesa KuantoKusta já notava que as passadeiras estavam entre os novos produtos mais procurados pelos portugueses, com o El Corte Inglés a ser das cadeias que registaram um aumento significativo na procura de material desportivo logo em Março. “O encerramento de ginásios e o aumento do trabalho em casa criaram a necessidade de investimento em máquinas de fitness, acessórios de desporto ou portáteis”, explicou um porta-voz da cadeia ao PÚBLICO. “Para o aumento da venda de artigos de desporto, contribuiu também a crescente prática de exercício físico na Internet com vários ginásios e personal trainers a criarem conteúdos online.”

A apostar na tendência, no começo de Abril, a Sonae Capital Fitness (do grupo Sonae, proprietário do PÚBLICO) decidiu investir no “primeiro ginásio 100% virtual português”, com 250 aulas virtuais novas por mês e uma equipa de 200 profissionais.

É uma tendência que deve continuar. “O negócio do fitness online vai sempre aumentar, nem que seja porque os praticantes sentiram que pode resultar e é bastante cómodo. Para os profissionais de exercício físico também é bastante melhor, porque embora seja mais desgastante, poupam em rendas e deslocações”, diz ao PÚBLICO Hugo Meca, fisiologista de exercício físico, notando que, se “a remissão, tratamento eficaz da covid-19 ou vacina tardar, maior será o recurso aos personal trainers virtuais”.

Telemóveis são os que mais ficam na prateleira

Os telemóveis são dos produtos onde se regista uma queda maior, com as vendas a cair 30% no primeiro mês de isolamento social segundo a GfK. É uma tendência anómala para esta altura do ano, em que são lançados novos aparelhos topo de gama.

“A queda mostra que os telemóveis se tornaram um produto da moda. Normalmente, não se muda de telemóvel por necessidade, mas porque foi lançado um produto novo e queremos ter as funcionalidades mais recentes”, explica Figueiredo. “Numa altura de esforço adicional para muitas famílias, e um investimento reforçado noutros produtos, é normal que o telemóvel não seja uma prioridade.”

Com muitas marcas a lançar uma mão-cheia de novos modelos todos os anos, um estudo da Universidade de Lucerne, na Suíça, já dizia que o maior motivo para se mudar de telemóvel não era a necessidade, mas sim a pressão dos pares, promoções das operadoras de telecomunicações, e baterias que duram mais tempo. Com as pessoas a passar mais tempo em casa, o último problema deixa de existir.

A par dos telemóveis, câmaras fotográficas e pacotes de experiências (em que são oferecidos tratamentos de beleza ou estadas em hotéis) também têm estado a cair. “As câmaras fotográficas, em particular, são produtos que costumam ter mais procura nesta altura do ano, com as pessoas a procurarem novos aparelhos antes de irem para férias. Agora não há essa necessidade”, explica Carlos Figueiredo. “ Imagino que só a partir de Junho é que o impacto da covid-19 será menor nas vendas.”

Ainda assim, de acordo com inquéritos realizados pela empresa de análise de mercado Kantar, 38,9% dos portugueses não acredita que a sua vida volte à normalidade até ao final do Verão.

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