Lei do perdão: riscos, dúvidas e incongruências

Em Portugal, transfere-se o risco de contágio das prisões para a própria comunidade. Será que esta lei veste mesmo a capa do humanismo?

Lei: Lei n.º 9/2020 de 10 de abril, que aprovou o regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença covid-19.

Inédito Processo Legislativo: A lei é aprovada no Parlamento numa quarta-feira (dia 8 de abril de 2020), disponibilizada no site da AR apenas no dia seguinte, quinta-feira, 9 de abril, publicada numa Sexta-Feira Santa (feriado, dia 10 de abril, por volta das 19h), para, 12 horas depois, começar a ser aplicada no sábado de manhã, dia 11 de abril. Processo legislativo atribulado e supersónico, sem qualquer estratégia de preparação junto dos conselhos superiores. Nem sequer informação quanto à data da publicação e entrada em vigor. Por isso, registaram-se dificuldades em garantir meios adequados em vários TEP com recursos humanos e material de proteção. Não obstante as incontestáveis razões de saúde pública, o que terá justificado esta precipitação?

Boa resposta dos juízes, magistrados do MP, funcionários judiciais, funcionários da DGRSP no dia 11 de abril, mostrando coesão para, dentro do possível, verificar processos, fazer promoções, produzir despachos e emitir mandados. Advogados presentes e vigilantes.

Infeção em ambiente prisional. Até ao dia 13/4 são conhecidos quatro casos de infetados nas nossas cadeias (uma reclusa, duas guardas e uma funcionária). Até ao momento, não foi tornado público qualquer estudo que fundamente as opções de redução de cerca de 20% dos reclusos nas prisões e respetivos ganhos efetivos.

Reflexos sociais não medidos pelo legislador: estará a sociedade preparada para receber antecipadamente estes reclusos? Que preparação foi feita a nível familiar e ocupacional para recebê-los? Terão muitos deles para onde ir? Há vários desamparados e toxicodependentes, libertados no sábado, dependentes da metadona, que viviam em pensões que se encontram fechadas. Não têm onde trabalhar; não têm como se sustentar ou comer. O que lhes resta fazer?

Os próprios serviços de apoio social, depauperados de meios pela situação de emergência, com necessidades acrescidas de apoio a idosos, doentes e pessoas em isolamento profilático, terão capacidade para responder a esta nova necessidade? Será que a opção de colocar 2000 reclusos na rua é a melhor neste contexto tão crítico? Recorde-se que o recluso não pode opor-se à libertação e manter-se na cadeia, caso seja essa a sua vontade – a libertação é compulsória.

Colisão de normas: no sábado, muitas foram as dúvidas levantadas, já que vigoravam restrições à circulação. Desde logo, para os reclusos que não moram no concelho da cadeia, desprovidos de transporte para circular. Mas também os familiares dos reclusos impedidos de circular em direção a estabelecimentos prisionais.

Inconstitucionalidade da Lei do Perdão? A propósito da lei injusta, Radbruch defendia que “há um direito acima das leis”, a Constituição.

1 – O princípio da igualdade constitui pilar fundamental do Estado de direito [art. 13.º/1 CRP, “todos os cidadãos (…) são iguais perante a lei”]. Por isso, o tratamento desigual dos cidadãos tem de se fundar em razões suficientemente justificativas. Não desconhecendo a jurisprudência do TC sobre as leis de amnistia e de perdão genérico, que vai no sentido de que o princípio da igualdade em tais leis “só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis, devendo entender‑se que tratamentos legais diferentes só traduzem uma diferenciação arbitrária quando não é possível encontrar um motivo razoável, decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível para essa dife­renciação” (ACs 42/95, 152/95 e 444/97), podemos, no entanto, questionar se o legislador, ao prever que apenas alguns dos condenados que não cometeram crimes considerados “imperdoáveis” beneficiem do perdão – aqueles cujas penas, ou remanescente delas, não ultrapassem os dois anos, excluindo os demais (aqueles cujas penas, ou remanescentes delas, ultrapassam os dois anos), que não terão direito a qualquer diminuição de pena – não está a atuar arbitrariamente, violando o princípio constitucional da igualdade. As leis da amnistia dos anos 90 não padeciam deste vício específico no “desconto”, tratando de modo igual todos os reclusos.

Vejamos um exemplo sugestivo: dois coautores de um crime não excluído da aplicação do perdão, sendo um condenado numa pena de prisão de dois anos, e o outro numa pena de prisão de dois anos e um dia, apenas por funcionamento dos fatores de determinação da medida concreta da pena (p. ex., ao nível dos antecedentes criminais). Enquanto o primeiro será perdoado, não cumprindo um só dia de prisão, o segundo cumprirá integralmente essa pena. O que poderá justificar esta gritante diferença de tratamento? A grandeza da pena não será certamente, pois admite-se que o perdão abranja penas superiores a dois anos, desde que já parcialmente cumpridas, restando cumprir não mais de dois anos. As razões de saúde pública também não poderão justificar essa desigualdade, dado que todos os reclusos estão sujeitos ao mesmo risco de contágio.

2 – Também parece violar o princípio da igualdade o facto de o legislador, prevendo que a Lei do Perdão vigore até à “data fixada pelo DL previsto no n.º 2 do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o qual declara o termo da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença covid-19” (art. 10.º), limite a aplicação do perdão às decisões condenatórias transitadas em julgado até ao dia anterior ao da entrada em vigor (artigo 2.º, n.º 7). Ora, qual a razão de tratar diferentemente os condenados cuja sentença condenatória transitou em julgado no dia 10 de abril daqueles cuja sentença condenatória transitou em julgado no dia 11 ou 12 de abril, enquanto se mantém em vigor esta lei de clemência? Ainda que se trate de opções políticas mitigadas com critérios jurídicos, as mesmas não devem conduzir a tratamentos ostensivamente desiguais.

3 – Dúvidas na aplicação da lei aos condenados com sentença transitada em julgado até ao dia 10/4, mas ainda não detidos (art. 2.º). A lei pressupõe que esses condenados sejam detidos para depois beneficiarem do perdão: ou seja, terão de ser detidos, conduzidos à prisão e posteriormente libertados? É absurdo prender alguém quando de antemão se sabe que irá ser libertado. Mais: é exatamente o oposto ao fim da lei (evitar o contágio), trazendo alguém de fora para dentro de muros e potenciando o contágio. Não pode ser essa a interpretação: apela-se aqui, se necessário, a uma interpretação corretiva da lei (suspender a emissão de mandados e aplicar o perdão sem que o condenado seja detido).

Incongruências da Lei do Perdão

1 – Não podem ser beneficiários do perdão os reclusos que praticaram certo tipo de crimes. Mas, entre as exclusões do art. 2.º da Lei 9/2020, observa-se que ficou de fora o roubo agravado, que implica emprego de violência contra a pessoa, o que não se compreende face à exclusão do crime de coação.

2 – Por outro lado, nos termos do art. 8.º, os reclusos ficam sujeitos, no ato de libertação, à obrigação legal de cumprir isolamento. Mas como? Quando os familiares os vão buscar à prisão, há abraços e coabitação. E uma vez chegados a casa (para quem a tem), tais reclusos terão que sair para ir à farmácia ou comprar alimentos. Na Califórnia, os reclusos abrangidos pelo perdão são aqueles que seriam libertados ao longo dos próximos 60 dias, sendo todos testados à saída da prisão para não serem um foco de contágio na comunidade, sobrecarregando ainda mais o sistema de saúde. Em Portugal, nada disso está previsto e nada disso está a ser feito. Em Portugal, transfere-se o risco de contágio das prisões para a própria comunidade.

Será que esta lei veste mesmo a capa do humanismo?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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