Como é que as ovelhas originaram a epidemia da doença das vacas loucas?

Cientistas de cinco países da Europa, incluído Portugal, sugerem que a estirpe que originou a epidemia da doença das vacas loucas veio da scrapie atípica dos ovinos.

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A doença das vacas loucas ficou conhecida devido à epidemia que surgiu no Reino Unido Jeff T. Green/Reuters

Pode uma doença que afecta pequenos ruminantes como a scrapie atípica causar encefalopatia espongiforme bovina, mais conhecida como doença das vacas loucas? Uma equipa de cientistas da Europa – incluindo de Portugal – analisou a scrapie atípica em ratinhos transgénicos e observou que a estirpe de priões causadora desta doença consegue converter-se na estirpe da encefalopatia espongiforme bovina que originou a epidemia da doença das vacas loucas. Os investigadores realçam ainda a necessidade de se manterem medidas que evitem um potencial ressurgimento da epidemia.

Tanto a scrapie nos ovinos e caprinos como a doença das vacas loucas são encefalopatias espongiformes transmissíveis e doenças neurodegenerativas fatais. A doença das vacas loucas ficou conhecida devido à epidemia que surgiu na década de 1980 no Reino Unido. Apesar de se saber que essa epidemia se espalhou muito devido à reciclagem de carcaças de animais infectados (como de ovinos) para alimento de gado bovino, desconhece-se o mecanismo exacto que iniciou a doença.

Em Portugal, o primeiro caso de encefalopatia espongiforme bovina (BSE, na sigla em inglês) foi detectado em 1990 num animal importado do Reino Unido. Em 2003, foram identificados no país os primeiros casos de scrapie atípica.

“Não se conhece o potencial de transmissão desta doença [a scrapie atípica] a outras espécies pecuárias nem a humanos”, refere-se num comunicado sobre o trabalho publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Tal como outras encefalopatias espongiformes transmissíveis, sabe-se que a scrapie atípica é causada pela conversão da proteína priónica normal fisiológica numa isoforma patológica. A interacção entre a isoforma patológica e a fisiológica é assim considerada o momento-chave na transmissão de priões, proteínas anormais que esburacam o cérebro e o deixam parecido com uma esponja.

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A proteína prião torna-se infecciosa quando assume uma forma anormal DR

Agora, um grupo de cientista de Espanha, França, Noruega, Reino Unido e Portugal – nomeadamente Leonor Orge, investigadora do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, em Oeiras – quis saber mais sobre os mecanismos da scrapie atípica. Para isso, transmitiu-se scrapie atípica a ratinhos transgénicos, isto é, modelos animais que expressam a proteína priónica bovina em vez da dos ratinhos.

Verificou-se então que a transmissão da scrapie atípica nos ratinhos transgénicos originava a estirpe da encefalopatia espongiforme bovina que levou à epidemia da doença das vacas loucas. Viu-se ainda que o agente patogénico da encefalopatia espongiforme estava na maioria das amostras analisada. “Estes priões da encefalopatia espongiforme bovina originar-se-ão devido à infecção do prião da scrapie atípica”, indica-se no comunicado.

Implicações na saúde pública

Mas como pode a scrapie atípica ter dado origem à epidemia da encefalopatia espongiforme bovina? Os investigadores juntaram três informações: a epidemia da doença das vacas loucas foi maior devido à reciclagem de carcaças de animais infectados para alimento de gado bovino; a scrapie atípica em pequenos ruminantes no Reino Unido foi detectada antes do surgimento da epidemia; e agora observou-se a presença de priões da encefalopatia espongiforme bovina na scrapie atípica. Resultado: as carcaças de ovinos infectados com scrapie atípica usadas no fabrico de rações para bovinos terá originado a estirpe que veio a causar a epidemia.

“O nosso estudo traz um conhecimento sem precedentes sobre a evolução das propriedades biológicas dos priões que veio a ser desencadeada pela transmissão entre espécies [de ovinos para bovinos]”, sublinha ao PÚBLICO Juan Carlos Espinosa, investigador do Instituto Nacional de Investigação e Tecnologia Agrária e Alimentar, em Espanha, e um dos autores do trabalho. O cientista destaca também as “grandes implicações na saúde pública” deste trabalho devido ao risco de ressurgimento desta epidemia. Em 2014, Portugal obteve o estatuto de segurança mais elevado (“país de risco negligenciável de BSE”) em relação à encefalopatia espongiforme bovina.  

Como forma de evitar um ressurgimento da doença das vacas loucas, Juan Carlos Espinosa refere que os tecidos de pequenos ruminantes não devem ser usados para alimentação de gado bovino. “A exposição do gado bovino aos tecidos de pequenos ruminantes deve ser limitada para que se evite novas ocorrências da encefalopatia espongiforme bovina”, avisa.

Como os priões que existiam nas vacas também infectaram pessoas que ingeriam carne e outros produtos contaminados, esta epidemia foi uma grande preocupação. Saltou a barreira das espécies e causou uma variante nos humanos da doença de Creutzfeldt–Jakob, doença que tinha sido descrita em 1920 pelos neurologistas alemães Hans Gerhard Creutzfeldt e Alfons Maria Jakob.

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