O padre António Vieira no país dos cordiais

Apesar da descolonização política, a psique nacional reitera os hábitos mentais do colonizador; e assim, na consciência de muitos, Portugal ainda é império. Por outro lado, boa parte do comentariado tradicional desqualifica as leituras alternativas da história como anacrónicas, estrangeiradas e “incordiais”. A quem serve a hegemonia lusotropical e quem são os seus cultores? Um ensaio sobre a eterna leveza do anacronismo e os guardiães do consenso lusotropical.

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Rui Gaudêncio

Em anos recentes, e de forma mais pronunciada desde 2017, há vários indícios claros de que o consenso em torno da narrativa sobre o significado e legados do colonialismo português se esgotou.

Esse consenso, construído a partir de finais do século XIX, assentou, em parte, na exaltação do período das viagens de exploração marítima e expansão imperial de Quatrocentos e Quinhentos. Concomitantemente, este projecto imperial foi também acompanhado pela produção e difusão de um discurso defensivo que interpreta esse passado como excepcional no contexto europeu, porque alegadamente inspirado numa visão humanista e universal. Este discurso, que foi sofrendo adaptações circunstanciais ao longo do tempo, infundiu o lusotropicalismo de Gilberto Freyre.

Entretanto, a mitologia do excepcionalismo adquiriu particular força em Portugal a partir dos anos 50 do século passado, quando a diplomacia do Estado Novo precisou de argumentos para justificar internacionalmente a ordem colonial a que submetia os territórios que hoje conhecemos como os países africanos de língua oficial portuguesa. Esta ordem colonial, importa marcar, era simultânea ao regime ditatorial que imperava na metrópole. Ou seja, o imperativo de sobrevivência do regime salazarista — simultaneamente, colonial e fascista — no contexto da ordem política do segundo pós-guerra, usou da fábula Freyriana para naturalizar o seu próprio poder e urdir a narrativa mitológica da missão civilizadora benigna. Nada disto é só passado. Ainda hoje estes legados insistem em reverberar, de forma acrítica, na esfera pública portuguesa.

De facto, nem o 25 de Abril nem as independências africanas beliscaram o consenso ideológico em torno do lusotropicalismo. Apesar da descolonização política, que teve lugar no pós-25 de Abril, a psique nacional reitera repetidamente os hábitos mentais do colonizador; e assim, na consciência de muitos, Portugal ainda é império.

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Fonte Monumental de Belém e Padrão dos Descobrimentos, com uma espada decorada com a cruz da Ordem de Avis, símbolo da força das armas e da fé cristã MARILYN MARQUES

O questionamento crítico de que tem sido alvo, desde pelo menos os anos 1950 por parte de intelectuais africanos e desde os anos 1980 por parte de universitários portugueses, não parece, até agora, ter permeado a opinião pública. A emergência de novos atores sociais, com destaque para os sujeitos racializados, cujas intervenções na sociedade portuguesa sempre existiram mas nunca foram reconhecidas pelas instâncias legitimadoras das narrativas culturais e historiográficas, constitui um fator decisivo na quebra da hegemonia lusotropical.

Outro contributo narrativo e representacional é dado pela internacionalização da universidade, o incremento da mobilidade dos académicos portugueses e o crescente interesse de estrangeiros nos arquivos coloniais portugueses. Mas a questão da descolonização, que também é académica, configura, na sua essência, um problema de cidadania e representação democrática.

Os guardiães do consenso histórico

As intervenções críticas que têm marcado a actualidade têm suscitado fortes reações por parte dos que assumem o papel de guardiães do velho consenso: académicos e outros intelectuais aposentados, o comentariado tradicional, grisalho e conservador — predominantemente masculino, branco, lisboeta e de uma certa classe social — que pulula um pouco por todos os jornais e televisões, interpretando a “realidade” nacional a uma só voz. A estes juntam-se também vários catedráticos, ainda no ativo, e funcionários superiores em instituições museológicas, bibliotecas e arquivos que emprestam o seu nome e título profissional ao serviço de narrativas edulcoradas e mitologizantes do passado colonial.

Uma das críticas que mais recorrentemente são por estes guardiães endereçadas a todos os que questionam a sua versão “consensual” do passado é a de que incorrem no pecado nefando do anacronismo: atreverem-se a impor a sua visão do presente — não raro por eles caricaturada como uma visão “politicamente correta” e ideológica — à leitura dos eventos do passado. Segundo estes guardiães do consenso histórico, habitamos hoje uma outra dimensão temporal onde passado, presente e futuro em nada se tocam ou relacionam. À primeira vista, o suposto “antianacronismo” destes guardiães parece intuitivo. Mas uma análise mais cuidada dos labirintos da sua lógica revela um sem-fim de paradoxos e incoerências.

Vejamos. Quando estes custódios se erguem hoje para enaltecer os “grandes feitos”, as extraordinárias “descobertas” ou as fantásticas “revoluções” operadas pelos “heróis” do passado, fazem-no a partir do mesmíssimo presente que connosco é partilhado. Apesar disso, olham para o passado apenas com o intuito de escolher “grandes feitos” para enaltecer, valorizando só certos momentos, datas e/ou protagonistas em detrimento de outros — o que é não só uma opção editorial, mas também um poderoso ato de curadoria.

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Tânia Azevedo

O que os guardiães do consenso não fazem, pelo contrário, é explicar estas opções ou sequer admitir que elas existem enquanto tais. Possivelmente, na sua imaginação, serão autores de uma história universal e eterna: válida para sempre e em todos os lugares; imune a releituras; impérvia ao debate e acima de qualquer dúvida. E é precisamente a partir deste equívoco que emana a fraude da história consensual: querer naturalizar uma só interpretação da História como a única possível ontem, hoje e amanhã.

Desta forma, os guardiães não só naturalizam o seu próprio poder, como neutralizam qualquer questionamento ao seu prezado consenso, acusando quem o faz de preconizar uma história ideológica e anacrónica. No entanto, esquecem-se com isto que celebrar os “grandes feitos” de homens envolvidos no processo violento de colonização e defender a narrativa rosácea do “grande Portugal” é também uma escolha ideológica — curiosamente, a mesma escolha ideológica vigente em Portugal durante todo o regime salazarista. Mas o “labirinto da saudade” destes guardiães não precisa de coerência. Basta reparar que o anacronismo só existe quando a sua visão hegemónica do passado é questionada e quando a mitologia dos “grandes homens” começa a soçobrar face ao contributo de comunidades historicamente excluídas, marginalizadas e oprimidas. Impõe-se a questão: se a resistência dos povos historicamente oprimidos foi contemporânea aos actos ditos heróicos, por que motivo é anacrónico para os guardiães do consenso questionar a resistência mas não o heroísmo?

O anacronismo em ação

Anacronismo significa erro cronológico ou facto, evento ou posição atribuída a um tempo do qual, aparentemente, se está desfasado. Etimologicamente, anacronismo vem do grego anakhronismós, que quer dizer contra o tempo ou contratempo. Ora, o tempo em que vivemos tem-nos trazido produtivos contratempos, ou contrariedades, que abrem lugar a novas temporalidades e narrativas dentro do presente. Nesse sentido, como “contratempo”, o anacronismo pode ser objecto da história. Como contratempos, muitos dos projectos de memorialização que hoje se contestam, apesar de falarem sobre o passado, não são efetivamente do passado. Antes falam-nos do presente.

Monumentos recentes como a estátua do Padre António Vieira, inaugurada em 2017 no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, são na realidade não mais do que materializações fantasistas da história. Essa estátua constitui, por isso, um perfeito exemplo de dissimulação e disfarce: finge ser uma ruína contemporânea de Vieira, quando afinal ela foi inventada naquele espaço só em 2017. Ou seja, a estátua é um fac-símile encomendado, pago e inaugurado “hoje”. É, por isso mesmo, não mais do que um arcaísmo estórico que o presente urdiu e que atabalhoadamente tentou maquilhar de jóia de família. Ela é a prova de que o tempo histórico não é algo linear, mas processual e saturado de temporalidades — e que, simultaneamente, a construção das imagens no tempo se inscreve em modos de fazer organizados por discursos de poder que constroem a visualidade, a sua reprodução na longa duração e os seus modos de apreensão.

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Rui Gaudêncio

Assim, a questão a que falta responder é: quem é que em 2017 precisou desta estátua? E porquê? Qualquer resposta a esta pergunta tem necessariamente de começar com a indagação das suas origens e raízes simbólicas. Esta estátua, antes de mais, nasce de um equívoco: a tentativa de fazer perdurar, de forma intencional, uma narrativa falsa acerca do império no espaço público da capital.

Patrocinado pela Câmara Municipal de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia, a Companhia de Jesus e o Patriarcado de Lisboa, numa iniciativa recente de requalificação do espaço urbano lisboeta, este insistente engano de interpretação, entretanto, germinou e teve sementes quando foi encomendado ao escultor Marco Fidalgo, que, banhando-se no néctar das fantasias coloniais que sempre deleitam a Igreja e o poder político em Portugal, conjeturou que Vieira teria chegado “ao coração do povo índio através das crianças”.

Mas o afã na perpetuação da narrativa dos grandes homens e na exortação de Vieira como “defensor dos direitos humanos”, numa época em que esse conceito nem sequer tinha sido formulado, não deixa tempo para discursos mais complexos e que forcem as próprias instituições eclesiásticas — nomeadamente a Companhia de Jesus — a encarar o seu papel fulcral na expansão do colonialismo e da economia escravocrata. Aqui esbarramos novamente com mitos. A Companhia de Jesus não manifesta qualquer desconforto quando missionários jesuítas são exortados pelo seu brilhantismo nas letras, física, matemática, entre outros domínios do conhecimento. No entanto, o mesmo não acontece quando se discute o papel — bem documentado, aliás — da Companhia enquanto uma das maiores proprietárias de pessoas escravizadas até à sua expulsão do espaço imperial português em 1759. Quanto a esse papel, impera um silêncio ensurdecedor — um silêncio que clama, de resto.

Porém, evidentemente, o rigor histórico esteve longe das preocupações dos promotores da estátua. Por isso é que o cardeal-patriarca de Lisboa procurou atestar a sua verdade histórica dizendo que estava “fiel àquilo que as gravuras reproduzem” — no fundo, apelando a uma desconcertante inverosimilhança como critério, já que as “gravuras” foram produzidas várias décadas após a morte de Vieira. Por outras palavras, D. Manuel Clemente parece ter querido dizer que a visão que os séculos XVIII e XIX construíram do célebre causídico, e eloquente defensor da escravização dos africanos, é aquela que os portugueses do século XXI precisam e merecem.

Ora, se o contexto da produção das ditas gravuras foi caracterizado pela reconfiguração e expansão do poder imperial, devemos perguntar-nos que projetos imperiais se delineiam de 2017 para cá, para que a sociedade portuguesa do século XXI, laica e nominalmente pós-colonial, mereça ser catequizada em permanência no espaço público pelos fantasmas de bronze que desse império sobraram. Não será antes que o anacronismo prelatício, associado ao comemorativismo municipal, preconiza uma política da memória claramente apostada em apagar da história todos os que não se reconhecem na versão profética que Vieira também ajudou a construir? Num momento histórico marcado pela emergência dessas vozes tradicionalmente silenciadas e remetidas para as margens do espaço público e político português, não é esta estátua afinal uma declaração enfática de fidelidade a um consenso decididamente anacrónico?

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Mas a narrativa do grande “herói dos índios” volta a soçobrar quando analisada no contexto do seu próprio tempo. Esta narrativa quer-nos fazer crer que Vieira era único, excecional e absolutamente ímpar. Infelizmente, seria melhor se, em vez de panegíricos, os guardiães do consenso consultassem tanto os arquivos como a historiografia. Constatariam rapidamente que a escravização dos povos indígenas fora proibida no império hispânico desde 1501 — sendo reiterada nas Leis de Burgos (1512), na bula papal Sublimus Deus de 1537 e nas Novas Leis de 1542. Em contraste, as primeiras iniciativas legais de proibição da escravatura indígena para o caso português datam de Setecentos — não que as “capturas” tenham alguma vez acabado, como poderá constatar quem visite a Torre do Tombo ou o Arquivo Histórico Ultramarino.

Por outro lado, os discursos dos guardiães far-nos-iam ainda crer que Vieira inventou uma mundividência antiesclavagista que afinal só glosou. Quando Vieira escreveu os sermões que hoje são criteriosamente escolhidos com artimanhas de contador de estórias, havia já uma sólida tradição escolástica argumentando contra a ideia aristotélica de escravatura natural. Ou seja, Vieira não criou, Vieira anotou; e, quando o fez, fê-lo seguindo os moldes de uma tradição centenária de práticas de argumentação e construção do conhecimento.

Infelizmente, os anacronismos acumulam-se também no próprio pedestal que informa qualquer casual transeunte sobre quem Vieira foi: “Jesuíta, Pregador, Sacerdote, Político, Diplomata, Defensor dos Índios e dos Direitos Humanos, [e] Lutador Contra a Inquisição.” É curioso que os guardiães da hegemonia lusotropical não tenham encontrado qualquer anacronismo nesta escolha de palavras. Como Vieira nunca se definiu a si próprio como “político” ou “defensor dos direitos humanos”, resta saber quem o fez e porquê. É que no século XVII “político” não era uma coisa que se era, mas uma coisa que se praticava, enquanto o conceito de “direitos humanos” nem sequer existia. Mas, evidentemente, o anacronismo só importa quando as críticas legítimas de vozes tradicionalmente marginalizadas se levantam contra os agentes políticos, culturais e religiosos que tradicionalmente têm dominado a sociedade portuguesa.

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Rui Gaudêncio

História e usos do passado

Do ponto de vista disciplinar, a História lida com a mudança, a contingência, a diferença; o que foi e já não é. Por este motivo, é natural que os presentes em que a História é feita regressem a velhos problemas, narrativas, textos e protagonistas históricos de novas maneiras. Nem Vieira nem qualquer outra pessoa ou momento que seja estão imunes a esta dinâmica. Fosse esta estátua um testemunho da cultura material de outro tempo — do tempo de Vieira, talvez —, seria admissível que historiadores, arqueólogos, museólogos e antropólogos a estudassem e contextualizassem enquanto tal. Mas esta estátua não é do século XVII, ela é de 2017. Ela é “nossa” não só porque foi produzida no nosso tempo, mas porque também ela foi financiada pelos poderes públicos actuais.

Assim sendo, esta estátua não nos pode ensinar nada de historiograficamente rigoroso acerca da história de Portugal, do seu império, dos modelos de colonização e das relações raciais. Ela ensina-nos, sim, acerca da mitologia lusotropical do colonialismo benigno — o que, em todo o caso, não é feito de forma clara e honesta. Esta estátua tenta recriar no presente uma imagem edulcorada tanto da colonização portuguesa no Brasil, como do tratamento dos povos indígenas, do papel da Igreja Católica e da Companhia de Jesus, mais especificamente. E isso, sim, diz-nos muito sobre o nosso presente.

A estátua de Vieira é duplamente anacrónica: por ser nossa contemporânea, apesar de não ser representativa do nosso presente. Antes, ela representa um entendimento da figura de Vieira presa a uma narrativa panegirista e nacionalista. Por outras palavras, ao propor a ideia de Vieira como precursor iluminado dos direitos humanos — um anacronismo prospetivo, que idealiza o passado a partir daquilo que só o futuro traria —, os promotores da estátua instituem e perpetuam no espaço público uma visão anacrónica da figura de Vieira — um anacronismo retrospetivo, que impõe ao presente uma narrativa inquestionada do passado. Curiosamente, a mesmíssima visão que foi promovida no séc. XIX, e sobretudo durante o Estado Novo, e que 45 anos de democracia não conseguiram desmontar.

É evidente, portanto, que os promotores da estátua não se reconhecem no memorial inaugurado em Lisboa (2008), na Calçada do Correio Velho, aquando do quarto centenário do nascimento de Vieira. Trata-se de um painel de azulejos que marca o lugar onde terá nascido e mostra um excerto de um dos sermões: “Para nascer, Portugal; para morrer, o mundo.” Quando o cardeal-patriarca diz que é com a estátua do Largo da Misericórdia que, pela primeira vez, se faz justiça e pública homenagem ao jesuíta, está a dizer-nos que é a primeira vez que se faz do modo em que ele se reconhece. Que a igreja atual se reveja na pose de um padre junto a crianças submissas é algo que preocupa, mas que deveria ser indiferente a uma sociedade laica. Até ao momento em que essa visão toma conta do espaço público e é patrocinada por fundos públicos — custo de 99 525,00 euros por ajuste direto, para sermos mais precisos. Preocupa sobretudo que seja a Câmara Municipal de Lisboa a identificar-se com uma mensagem paternalista e paroquiana, atrelada a uma conceção elitista de gestão do espaço público, já que não existiu qualquer consulta pública prévia à escolha do escultor, da obra ou da sua localização.

Não nos surpreendamos; esta foi a mesma câmara que em 2018 promoveu inadvertidamente o debate sobre um “museu da descoberta” destinado a celebrar o lusotropicalismo. Sabendo como sabemos que esse museu já existe a céu aberto, disseminado um pouco por toda a cidade, e concentrado na zona de Belém de forma mais acentuada, juntamente com instituições como o Arquivo Histórico Ultramarino, a Sociedade de Geografia, a Academia das Ciências, a Biblioteca da Ajuda e o MNAM, que guardam a memória do império perspectivada pelo poder. Infelizmente, para estas instituições, visitadas por inúmeros investigadores nacionais e estrangeiros, e fulcrais para um estudo mais plural e crítico do passado, não se mobilizam os fundos.

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Daniel Rocha

Aquela ideia de museu tem sido assumida pelos setores mais conservadores da sociedade portuguesa como pretexto para dar resposta a algumas das suas inquietudes: a diversidade social e cultural da sociedade portuguesa contemporânea, o cosmopolitismo dos seus jovens e a crescente visibilidade pública de agentes até então desconhecidos. Os ilustres que desfilaram diante da estátua de Vieira aquando da sua inauguração fazem parte do mesmo contínuo sociológico de intelectuais que caíram nos media e redes sociais durante os últimos dois anos, simplesmente para tentarem convencer os portugueses de que não existe espaço para imaginar narrativas diferentes, inclusivas e justas. “Quem achar que isto não vale nada então vá-se embora”, disse então um conhecido historiador e romancista.

O regime da cordialidade (e os incordiais)

O consenso entre as elites tem rituais próprios. Este “regime da cordialidade” armadilha todo o tipo de discussão e só tem sido rompido pela emergência de novos agentes que têm questionado as grandes narrativas do Estado-nação, seus símbolos e espaços. É contra esta incordialidade que se têm insurgido os que, até aqui, tinham por garantida a sua hegemonia no espaço público. Por lhes parecerem tão estranhos — pelas ideias, pelas origens e até pela cor da pele —, os incordiais tendem a ser encarados como exteriores ao próprio corpo da nação. Veja-se, a título de exemplo, o tratamento que receberam por parte do comentariado e do poder político o ativista Mamadou Ba em janeiro último, quando se atreveu a criticar a chocante atuação da polícia na repressão de habitantes de um bairro da periferia lisboeta ou da manifestação na Av. da Liberdade, ou, desde outubro, a deputada eleita Joacine Katar Moreira. Uma análise de incontáveis artigos de opinião publicados então e agora mostraria que os afrodescendentes em Portugal são tolerados apenas até ao momento em que se afirmam como sujeitos políticos de pleno direito e sobretudo se essa afirmação é acompanhada do exercício do direito à palavra e ao espaço público.

Perante este contexto, que fazer com a estátua de Vieira? Os agentes sociais que criam e sustentam representações deste tipo continuarão a reproduzir a sua hegemonia lusotropical no espaço público. As leituras alternativas que se fizerem continuarão a ser desqualificadas pelos intelectuais do regime como anacrónicas, estrangeiradas e incordiais. Essa hegemonia continuará a confundir-se com o exercício dos poderes públicos e uma visão de país que está longe de representar todos os portugueses. Porém, monumentos como este continuarão a ser feitos em nome de todos e pagos por todos. Cabe-nos reclamar o legado democratizador da Revolução de Abril e demandar, desde logo, a recontextualização de símbolos de exclusão e opressão. O artigo vigésimo primeiro da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à resistência a tudo o que ofenda “direitos, liberdades e garantias”.

Grupos de cidadãos anónimos têm vindo a tomar em mãos a recontextualização da estátua de Vieira. Logo em 2017, cidadãos recitaram-lhe poemas e tentaram depositar flores, mas foram confrontados com uma concentração de neonazis. Em 2018, o monumento amanheceu durante vários dias com ramos de flores brancas, no que parece ter sido uma alusão às camélias brancas do movimento abolicionista brasileiro do século XIX. Numa ação menos poética, mas de mensagem igualmente firme, alguém pichou o plinto com um “fuck colonialism” no passado dia 10 de Junho.

Estas intervenções têm sido acompanhadas por outras de idêntico teor um pouco por todo o país. No ano passado, pela mesma altura, o monumento salazarista da praça do Império no Porto também foi pichado: “Tirem esta merda daqui.” Há meses, uma estátua de Pedro Álvares Cabral foi igualmente intervencionada em Santarém. Desta vez, acrescentaram ao plinto “colonialismo é fascismo.”

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Estátua de Fernão de Magalhães (Praça do Chile, Lisboa) pichada DR

Os comentadores de serviço podem apressar-se a dizer que tudo isto é vandalismo. Porém, trata-se daquilo a que Frédéric Gros chamou dissidência cívica (Désobéir, 2018). Aquilo que os pichadores fazem não é mais do que se reconhecerem a si mesmos como sujeitos políticos, no quadro da reinvenção de uma democracia que se quer crítica e interrogativa. A “merda” que os pichadores do Porto incordialmente demandam que seja retirada é uma estátua mas é também, e sobretudo, a materialidade dos consensos impostos no espaço público; o fim da hegemonia narrativa imposta pelos seus guardiães.

Em suma, não há anacronismo na crítica às estátuas produzidas em contexto colonial, seja esse contexto aquele que vigorou até 1974-75 ou o que, após essa data, se reproduz continuamente no discurso oficioso do Estado português. Como aliás não há anacronismo na crítica ao “museu da descoberta” ou mesmo nos pedidos de desculpas e reparações. Estas foram exigidas em vida pelas pessoas escravizadas, sendo-lhes de imediato negadas — é por isso que, quando hoje se as pedem, não há anacronismo.

A crítica destina-se precisamente a assinalar a distância que o presente reconhece em relação aos valores do passado, o desejo de marcar uma ruptura informada com esses valores. Não se trata de uma recusa puritana da história, senão de uma veemente recusa da oclusão que a instrumentalização da memória impõe à ação histórica. Anacronismo é pretender que essa continuidade é não só possível como desejável. Urge, por isso, interromper a violência deste anacronismo como durabilidade colonial, que continua a produzir numerosas exclusões no presente, e engajar numa crítica que dê a conhecer as temporalidades heterogéneas, passadas e futuras, que atravessam o presente e os seus objetos. E o único destino que se pode dar às estátuas enxertadas da imaginação colonial lusotropical é o regresso à fundição.

Os autores seguem o novo acordo ortográfico

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