Isto não é um museu de Salazar, garantem responsáveis

Consultores do projecto de Santa Comba asseguram que não está em causa qualquer tipo de homenagem ao ditador, mas sim uma perspectiva crítica da história do regime.

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António Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros, sentado numa poltrona de couro no seu gabinete na residência oficial no Palácio de Sao Bento

“O compromisso é que não haverá nenhuma casa-museu António Oliveira Salazar”. A afirmação que João Paulo Avelãs Nunes, historiador e consultor do projecto que inclui a instalação de um centro interpretativo no Vimieiro, em Santa Comba Dão, repetiu ao longo da conferência de imprensa desta quarta-feira à tarde procurou serenar as ondas que se levantaram ao longo de Agosto.

Depois de um mês em que se abriu a discussão, foi dirigido um apelo ao primeiro-ministro e lançada uma petição, sempre com referências ao “museu Salazar”, os responsáveis pelo centro interpretativo que vai nascer em Santa Comba Dão vieram a público para desfazer o que dizem ser equívocos e ficções: não se trata de um museu nem de uma casa-museu Salazar, mas sim de um Centro Interpretativo do Estado Novo (CIEN) que vai integrar um conjunto de outros quatro espaços na região. O projecto chama-se Rede de Centros de Interpretação de História e Memória Política da Primeira República e do Estado Novo e é uma iniciativa das autarquias de Penacova, Santa Comba Dão, Carregal do Sal, Tondela e Seia, que conta com a consultoria do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20) da Universidade de Coimbra (UC).

“Sabemos que, perante ditadores de ditaduras que ocorreram há poucas décadas, não se fazem casas-museu, a menos que se queira branquear, como acontece noutros países”, assegurou João Paulo Avelãs Nunes, membro do CEIS20. E se há algum perigo, refere, não é o de peregrinações. Se essas pessoas “forem ao museu, podem ficar ofendidas, chegar lá e partir [aquilo] porque não gostam do que está exposto”.

A rede é dinamizada pela Adices — Associação de Desenvolvimento Local, e implica a reabilitação e reutilização de cinco edifícios ligados a figuras de cada localidade, como é o caso de António José de Almeida, Afonso Costa, Aristides de Sousa Mendes e António de Oliveira Salazar. No caso de Tondela, o projecto é dedicado à antiga estância sanatorial do Caramulo e não a qualquer figura. O coordenador do CEIS20, António Rochette, que também esteve na conferência de imprensa, lembra que a rede foi apresenta a 17 de Julho, em Penacova, como uma forma de “defender os territórios de baixa densidade” e de “colocar no mapa territórios que são habitualmente esquecidos”. Só depois se levantou a discussão, quando os consultores do projecto já se encontravam fora do país.

No mesmo sentido, o coordenador da Adices, João Carlos Figueiredo, explicou que o projecto tem vindo a ser trabalhado nos últimos dois anos e meio e que o objectivo é conjugar a rede de cinco espaços com outros pontos atractivos da região, como a ecopista do Dão ou a ecovia do Mondego. A apresentação dos conteúdos nos espaços da rede quer-se feita “de forma isenta, sem apologias”, acrescenta. O projecto da rede deverá demorar dois anos a ser criado e ainda está dependente de candidaturas a financiamento comunitário.

Cuidados a ter

Sobre a questão de estar a ser criado um centro interpretativo do Estado Novo na terra natal da sua figura maior, Avelãs Nunes responde: “não percebo que um centro de interpretação, com grande grau” científico, “possa ser local de peregrinação”. Dá os exemplos de Itália e França, onde a extrema-direita tem actualmente expressão eleitoral, mas que não estão relacionados com a existência de locais de memória ligados a Mussolini ou a Pétain, aponta. Fala também de um caso mais próximo: Coimbra, onde há “uma miniexposição do mundo português, aberta desde 1940”, desenhado “para as crianças verem a beleza do império colonial português”, menciona, referindo-se ao Portugal dos Pequenitos.

Sublinha que, dos quatro espaços previstos na rede ligados a personalidades, só no caso do Vimieiro “não há possibilidade de haver qualquer casa-museu”, precisamente “porque há cuidados deontológicos a ter quando se lida com lugares de memória associados a ditaduras e a ditadores”. E prossegue: “e nós, que trabalhamos com historiografia, com didáctica da história e com património cultural e museologia profissionalmente há bastantes anos, sabemos disso”. Nesse sentido, o historiador rejeita que haja qualquer “cedência a facilidades, a um marketing político em nome de turismos fáceis”.

Em resposta a historiadores que se têm manifestado contra o projecto, Avelãs Nunes diz que vários dos investigadores do CEIS20 que se têm debruçado sobre o período do Estado Novo até têm defendido “posições bastante drásticas” sobre o regime, em comparação com “outras pessoas que, curiosamente, têm posições bastante mais centristas”. E acrescenta, sem referir nomes: “É curioso que sejam radicais na comunicação social e moderadíssimos na produção historiográfica.”

Relativamente ao conteúdo expositivo, Avelãs Nunes explica que o Estado Novo será caracterizado e comparado a outras ditaduras, tanto da época dos fascismos como da Guerra Fria. A exposição permanente e as temporárias terão de passar pelo crivo de um conselho consultivo, que está ainda a ser constituído, mas que irá integrar investigadores de outras universidades. Como exemplo de um tema que poderá ser tratado, Avelãs Nunes fala dos “poderes do ditador”, quando comparados com Itália, referindo que Salazar foi o ditador com mais poder institucional nas ditaduras do século XX”. Mas também caberão aspectos como a organização corporativa, a guerra colonial, a relação com a Segunda Guerra Mundial, com a Guerra Civil de Espanha, a Mocidade Portuguesa, entre outros, aponta.

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