Foi preciso Roberto vir da Venezuela para surgirem as primeiras bicicletas partilhadas nos Açores

Roberto tem 23 anos e nasceu na Venezuela. Em 2017 fugiu em busca de liberdade. Foi para os Açores, terra dos avós, onde criou a Atlantic Bikes, a primeira empresa de partilha de bicicletas da região.

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Rui Pedro Paiva

Quando Roberto Medeiros, de 23 anos, chegou a Ponta Delgada, vindo de Caracas, e reparou que toda a gente andava de carro, questionou-se: “Porque não mudar um pouco as coisas?” O contraste de vir de uma cidade com mais de dois milhões de habitantes fê-lo perceber que existia um problema a resolver. “Quando tens uma população que percorre distâncias de 15 minutos de carro, percebes que existe um problema de mobilidade”, afirma Roberto ao P3. Das palavras aos actos, fundou a Atlantic Bikes, a primeira empresa de partilha de bicicletas da região, que começa a funcionar este mês.

“Alguém tem de dar o primeiro passo e arriscar, alguém tem de ir ter com as autoridades e explicar como podemos transformar a cidade”, explica Roberto, que começou a interessar-se pela mobilidade sustentável quando percorreu várias cidades da Europa e dos Estados Unidos numas visitas da escola, ainda na Venezuela. Uma viagem em particular, até à cidade americana de Cincinnati, no Ohio, foi decisiva: “Marcou-me ver as pessoas a ir para o trabalho de bicicleta e em fato e gravata”, conta. 

Aí inteirou-se que o transporte de carros só acarreta desvantagens: “É caro, não é prático, faz mal ao ambiente, nem é bom para a saúde mental e física, é tudo mau”, resume o jovem, que anda praticamente todos os dias de bicicleta e considera que a “cultura do carro está muito enraizada em Portugal”. Roberto quer alterar comportamentos. E, para ele, a “mudança tem de ser virada para a sustentabilidade e para a qualidade de vida” das pessoas.

“Há tanto que podemos fazer”

Foi também devido a essa vontade de “mudar as coisas” que teve de sair do seu país. Em 2017, a Venezuela já estava em tumulto. Roberto fazia parte da associação de estudantes da Universidade de Monteávila e participava em manifestações, organizava protestos e colava cartazes de madrugada para incentivar à renovação política no país. “A situação estava cada vez pior, desde da segurança à economia, passávamos semanas sem poder ir às aulas por causa dos protestos. Imagina o que é ter medo do próprio governo”, recorda, assumindo que corriam “riscos muito grandes”, mas tinham de “tomar posição”: “Tínhamos de lutar por aquilo que achávamos correcto: a liberdade”, conta o agora estudante de Estudos Euro-Atlânticos da Universidade dos Açores. Sentiu-se “intimidado” pela polícia política, teve amigos presos e foi perseguido. Decidiu fugir do país onde nasceu e cresceu. Fartou-se de ter “medo da polícia” e aterrou em Ponta Delgada, a terra de onde os avôs paternos tinham partido para a Venezuela na década de 1950. Nunca tinha ido aos Açores. Sozinho, instalou-se na antiga casa dos avôs, contando com o apoio de uns primos, com os quais sempre teve uma “relação próxima”.

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A adaptação a uma “terra nova”, com outra “cultura” e um “ritmo muito diferente”, foi “um processo lento”. “Vinha de uma capital de um grande país, tive de me adaptar, mas a qualidade de vida nos Açores é superior”, defende Roberto, revelando que a adaptação passou por aproveitar “o que a ilha tem”: já que “não há tanta coisa a acontecer” como na Venezuela, começou a fazer “surf, caiaque e a ir caminhar para as montanhas”. “Como não aproveitar essa beleza?”, pergunta retoricamente Roberto, de sorriso aberto, referindo-se às paisagens naturais de São Miguel.

No que muitos poderiam ver como um problema, o jovem viu como uma oportunidade. “Há tanto que podemos fazer nestas ilhas, têm um enorme potencial em tantas áreas diferentes”, realça. Avançou com a confiança de que “algo ia dar certo” e que “alguma oportunidade ia aparecer”. A oportunidade criou-a ele, implementando o primeiro sistema de partilha de bicicletas (bike sharing) da região.

“No futuro, os carros vão ficar de lado”

Desde o Verão passado que Roberto alimenta a ideia. Por fim, fundou sozinho a Atlantic Bikes, depois de um ano a “montar o sistema”, a “estudar modelos” de mobilidade e a contactar “gente de todo o mundo” ligada ao sector. Percebeu que para Ponta Delgada o que funcionaria “melhor” seria o sistema dockless, baseado num cadeado inteligente, colocado na bicicleta, que está conectado a uma app. Além de fornecer a localização das viaturas, o cadeado só abre quando o cliente solicita o veículo e só tranca quando a bicicleta está numa zona própria para o estacionamento. Se alguém a deixar destrancada numa área proibida, o cliente paga uma taxa extra e Roberto identifica a bicicleta através de geolocalização e vai buscá-la. “Esquece os problemas de estacionamento, este é o sistema mais moderno que existe.”

Para já, a Atlantic Bikes conta com 20 bicicletas e vai começar a operar durante Setembro, altura em que a aplicação para smartphone ficará disponível. “Ainda não sabemos bem a data, mas será certamente este mês”, avança o jovem empresário. Falta “apenas falta limar umas arestas”. Ainda assim, já se conhecem preços: 11 cêntimos por minuto ou uma assinatura mensal de 8,52 euros, que permite ao utilizador andar as vezes que quiser.

Para Roberto, “a cidade do futuro será aquela onde os carros vão ficar de lado”. E parece que todos ganham com uma sociedade “mais saudável e mais activa” – e com mais dinheiro no bolso: “Sai muito mais barato às pessoas comprarem uma bicicleta e o Estado, através do Serviço Nacional de Saúde, ia poupar com a redução de doenças. Ganhamos todos com um estilo de vida mais saudável.” Por isso é que o luso-venezuelano não acredita na tese daqueles que defendem que a utilização do carro é mais confortável porque, afiança, “esse conforto só existe no imediato”. A longo prazo, a bicicleta torna-se “muito mais confortável” devido à “prática de exercício físico” e “à inexistência de trânsito”

E ganha também o ambiente. Vitória que conta muito numa região como os Açores: “Se há alguém que deve apostar na defesa do ambiente, somos nós. Vivemos na natureza.” E ainda há muito a fazer. “A ideia é transformar a ilha, trazer coisas novas e apostar nos Açores. Eu acredito que podemos ser muito melhores do que somos agora e acho que estamos no caminho correcto”. Com esta determinação, certamente.

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