A preta do prédio da Bonifácio

Achamos que os racistas são apenas os tipos broncos e de cabeça rapada e excluímos as mais polidas, como é o caso de MFB. Portanto, MFB é uma intelectual racista.

O artigo de Maria de Fátima Bonifácio (MFB) é racista e estúpido e, por breves segundos, fiquei com a noção de que a historiadora foi teletransportada de um Portugal anterior a 1974 para julho de 2019. Os argumentos evocados no artigo são, igualmente, estúpidos, à semelhança com qualquer tese que tende a suportar o racismo.

Não faz sentido reclamar a fogueira para MFB pelo facto de ter defendido um conjunto de ideias que, apesar do seu caráter xenofóbico e racista, não deixa de ser uma opinião, e é importante que haja espaços de debate, mesmo quando os argumentos assentam na ignorância, como é, claramente, o caso. Por isso, não me choca que um jornal credível como é o PÚBLICO proporcione espaços para as pessoas partilharem as suas ideias, mesmo quando elas colocam em causa um conjunto de valores que, supostamente, uma larga maioria de nós subscreve.

Um dos castigos que podemos infligir a MFB é torná-la numa espécie de face visível de um conjunto de pessoas que pensa exatamente como ela mas que não tem oportunidade de exprimir de forma pública as suas opiniões. Dentro de toda a teia de preconceito do artigo de MFB, destacaria o seu único ponto positivo: ajudou a fazer com que o tema do racismo e da discriminação saíssem de vez do armário, pudessem ser discutidos na sociedade portuguesa e fez com que deixássemos aquela ideia irrealista de que em Portugal não existe racismo ou, em alternativa, que o nosso racismo é mais brando do que nos outros países. Aliás, é uma discussão semelhante à do colonialismo: são muitos os têm orgulho no passado colonial porque acreditam que o colonizador português era melhor pessoa e até se misturava com os pretos — neste caso, entenda-se, com as pretas —, originando uma sociedade mais miscigenada em comparação com as outras colónias.

Os argumentos racistas da autora tornam-na uma má pessoa ou menos inteligente? O primeiro problema reside aí: achamos que os racistas são apenas os tipos broncos e de cabeça rapada e excluímos as mais polidas, como é o caso de MFB. Portanto, MFB é uma intelectual racista.

A história ensina-nos, justamente, que o racismo se tornou num fenómeno social porque, de certa forma, foi também defendido por pessoas inteligentes, mas que acreditavam que a cor era o que determinaria o lugar que cada um deveria ocupar. Com isso, quero dizer que o racismo é transversal à classe social, ou seja, encontramo-lo em todos os setores e classes da sociedade portuguesa.

O outro perigo que o artigo de MFB acarreta é a legitimação científica do racismo. O racismo foi legitimado porque muitos dos homens da academia afirmavam na altura que os pretos eram menos inteligentes do que os brancos, que eram desprovidos de qualquer moral, que viviam na imundice e espalhavam doenças e que eram preguiçosos. MFB, melhor do que eu, poderá ajudar-me a encontrar mais mitos que se tornaram crenças e suportes quase inquebráveis ao racismo.

O exemplo que me ocorre da consequência da legitimação do racismo foi o episódio de Clennon King, um estudante negro que foi internado à força num asilo psiquiátrico, por ordem judicial, porque se candidatou à Universidade, em 1958.

MFB diz que “os ciganos são inassimiláveis “e os “africanos e afrodescendentes também se auto-excluem”. Um típico racista acredita que uns e outros não têm possibilidade nenhuma de adotar os valores dos de “raça” tida como superior e que aqueles que podem ter algum potencial de adotá-los são preguiçosos de mais para o fazer e, por isso, ficam no seu lugar de conforto.

Um outro argumento típico de um racista é diabolizar o outro e o artigo de MFB tem isso de sobra: “constituem etnias irreconciliáveis […] já nasceram em bairros periféricos e em guetos que metem medo”. Em relação aos bairros, aí está uma verdade; quando se junta a questão étnica com a pobreza, entramos num círculo vicioso, ou seja, aquilo que é um facto – enquanto resultado de ausência de políticas públicas eficazes de integração — é utilizado pelos racistas para justificar a perpetuação de uma condição social, ou seja, que os pretos devem continuar nos tais bairros periféricos.

Um outro argumento de um racista típico é apontar o dedo, afirmando que o outro é ainda mais racista. MFB escreve que “os africanos são abertamente racistas”. Claro que existem africanos racistas, sendo que o racismo, enquanto fenómeno, não é exclusivo dos brancos. Possivelmente, a diferença mais significativa do racismo do preto para o branco – sendo igualmente reprovável – é que é menos consequente, no sentido em que o racismo é mais violento quando é perpetuado por uma pessoa, grupo ou classe social com poder.

Um outro argumento que um racista emprega é utilizar as suas crenças para dividir. MFB tenta diabolizar a esquerda e o PS, fazendo crer que é um debate entre a esquerda e a direita. Escreve MFB que “só por uma cabeça de esquerda passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à universidade”. O racismo não deveria ser um debate entre a esquerda e a direita, mas sim entre os que acreditam numa sociedade decente e no seu contrário; entre os que acreditam que nenhuma característica ou opção individual devem, a priori, determinar a participação plena numa determinada sociedade.

Acredito, porém, que é importante que nós, os pretos, ciganos e descendentes, percebamos uma coisa básica no processo de visibilidade e de acesso ao poder: ou conseguimos alguma audácia para garantir a visibilidade na sociedade portuguesa ou vamos ficar ainda mais algumas décadas a sermos apenas reativos às opiniões racistas. A quota para a participação política pode resolver o problema? Pode acelerar, mas acredito que, tendo em conta a realidade portuguesa, os fatores colaterais dessa medida (ex: despoletar um confronto com base na cor) podem não justificar esse caminho. Existem condições objetivas em Portugal para que essa visibilidade aconteça sem ser pelo decreto, sendo que este objetivo dependerá, em larga medida, da nossa capacidade, enquanto minoria, de forçar esta mudança. Quantos é que pretos e/ou descendentes têm espaços na opinião pública em Portugal? Quando olhamos para o panorama empreendedor, também percebemos que praticamente não existimos em Portugal, apenas para dar alguns exemplos.

Ficar pelo caminho, significa que o filho da empregada preta poderá vir a trabalhar, no mínimo, como porteiro do prédio de MFB.

No fundo, é disso mesmo que estamos a falar: de conseguirmos encontrar estratégias para que o elevador social funcione em Portugal por uma das comunidades mais excluídas da sociedade portuguesa: os ciganos, os pretos e os seus descendentes.

PS.: Mesmo o texto de João Miguel Tavares (que gosto de ler) comete um erro (por ser amigo de MFB) ao dizer que acredita que há culturas superiores a outras. A partir do momento em que partimos deste pressuposto, quase que escancaramos a porta ao preconceito e ao racismo. O pressuposto de defender que a minha cultura é superior à tua dá quase sempre barraca. Mas este é um ponto para outro debate.

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