Polícia pôs fim à invasão do Parlamento de Hong Kong com gás lacrimogéneo

Centenas de manifestantes ocuparam a câmara principal do Conselho Legislativo, no dia em que se comemoram 22 anos da transição do território para a China. Teme-se onda de repressão nos próximos tempos.

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2019 protestos de conta anti-extradição de Hong Kong
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Os protestos em Hong Kong contra várias decisões do Governo local, acusado pelos críticos de agir de acordo com as instruções de Pequim, atingiram esta segunda-feira o ponto mais tenso de sempre, quando centenas de manifestantes armados com barras de ferro destruíram a protecção de vidro reforçado do Parlamento e invadiram o edifício. Lá dentro, escreveram mensagens nas paredes da câmara dos deputados, pintaram de negro o símbolo oficial e desfraldaram bandeiras do Reino Unido e de Hong Kong nos tempos do domínio britânico.

Depois de uma primeira atitude passiva, que causou estranheza junto dos líderes dos protestos, a polícia de choque decidiu entrar no edifício e lançar gás lacrimogéneo, para fazer dispersar os manifestantes. Às primeiras horas da manhã de terça-feira (são mais sete horas em Hong Kong que em Portugal continental), o South China Morning Post noticiava que o prédio já estava “desimpedido”. Mais de 50 pessoas ficaram feridas, segundo as autoridades médicas.

Tanto a invasão e ocupação do Conselho Legislativo, como o dia em que isso aconteceu, são símbolos da luta maior que está por trás dos protestos das últimas semanas: há 22 anos, no dia 1 de Julho de 1997, o território de Hong Kong passava a ser administrado pela China.

Durante a tarde, centenas de manifestantes que saíram de uma marcha pacífica nas ruas de Hong Kong, em protesto contra as comemorações do 22.º aniversário da transição, juntaram-se às portas do Complexo do Governo Central e começaram a tentar destruir a primeira barreira de protecção do edifício do Parlamento.

Ao fim de várias horas, já de noite, as investidas contra o vidro reforçado, com um carro de transporte de material de armazém, surtiram efeito. Centenas de pessoas entraram no edifício, quase todas com a cara tapada, capacetes negros e empunhando guarda-chuvas (o símbolo do movimento pró-democracia), sem que a polícia de intervenção tivesse agido.

Não há explicações oficiais para a passividade da polícia de choque perante a invasão do Conselho Legislativo de Hong Kong, nesse primeiro momento.

Num comunicado, 41 deputados fiéis ao Governo do território condenaram os “actos extremamente violentos e radicais” protagonizados pelos manifestantes mais jovens, e elogiaram a polícia pela sua “contenção”.

Um dos rostos da oposição, o deputado Fernando Cheung, do Partido Trabalhista, disse que as autoridades “montaram uma armadilha” aos manifestantes, ao permitirem a invasão do Parlamento. Para Cheung, o Governo e a polícia têm agora uma justificação pública para reprimirem os opositores.

No mesmo sentido, o jornalista James Griffiths, da CNN Internacional, disse no Twitter que “o sentimento público já estava a começar a virar-se contra os manifestantes mais jovens”, e que a invasão do Conselho Legislativo vai “selar essa condenação”.

As cenas no interior da câmara principal do Parlamento, transmitidas pelas televisões e através das redes sociais, quase deixavam sem palavras os convidados dos programas de canais como a BBC ou a Al-Jazira.

A partir de Londres, o ministro dos Negócios Estrangeiros e candidato ao cargo de primeiro-ministro do Reino Unido, Jeremy Hunt, deu o seu apoio “a Hong Kong e às suas liberdades”. “Nenhuma violência é aceitável, mas o povo de Hong Kong deve manter o direito às manifestações pacíficas exercidas de acordo com a lei, o que foi cumprido hoje por centenas de milhares de pessoas”, disse Hunt, referindo-se ao protesto pacífico nas ruas da megacidade, antes e depois de a chefe do Executivo local, Carrie Lam, ter discursado na cerimónia que marcou o 22.º aniversário da transição do território.

Autocrítica antes da invasão

No Centro de Convenções e Exposições, a cerca de um quilómetro dos edifícios do Governo de Hong Kong, Carrie Lam prometeu ouvir as razões dos manifestantes e chegou a esboçar uma autocrítica, antes da invasão do Parlamento.

“Os incidentes dos últimos meses provocaram controvérsias entre o povo e o Governo. Isso fez-me perceber que eu, enquanto política, tenho de me lembrar sempre da necessidade de captar o sentimento do povo de forma correcta”, disse a responsável.

A chefe do Executivo de Hong Kong referia-se à principal queixa dos milhões de manifestantes que saíram às ruas, nas últimas semanas, para protestarem contra a intenção do Parlamento de aprovar uma proposta de lei que entra em conflito com a identidade de grande parte da população.

Se essa lei for aprovada, qualquer pessoa suspeita de cometer crimes poderá ser extraditada para a China continental, onde o sistema judicial não garante a independência em relação ao poder político, ao contrário do que acontece em Hong Kong.

Na sequência dos protestos, as autoridades do território tentaram acalmar a situação prometendo que os tribunais de Hong Kong terão a última palavra nos pedidos de extradição, e que apenas serão avaliados os processos de pessoas condenadas a um máximo de sete anos de prisão.

Mas as promessas do Governo liderado por Carrie Lam não foram suficientes para acalmar os protestos. E o facto de a proposta ter sido apenas suspensa, e não posta de lado, criou ainda mais revolta, principalmente entre a população mais jovem, que acusa Pequim de estar a forçar mudanças em Hong Kong para que o território venha a ser administrado à imagem da China continental.

Apesar de ser um território autónomo da China, à semelhança de Macau, os habitantes de Hong Kong têm um passado de defesa da independência dos seus sistemas político e judicial em relação a Pequim.

Nos últimos anos, os jovens de Hong Kong têm endurecido a luta contra o que dizem ser a ofensiva da China para acelerar uma assimilação total, depois de Pequim ter recebido o território, das mãos do Reino Unido, com a promessa de manter liberdades como o direito à manifestação e a independência do sistema judicial.

Em particular, o movimento pró-democracia exige que a eleição para o Parlamento local e para o cargo de chefe do Executivo sejam feitas por sufrágio universal e directo. Em 2014, o Governo central chinês determinou que os eleitores de Hong Kong só podem escolher o seu chefe do Executivo de uma lista de até três candidatos seleccionados pela Comissão de Eleições – um órgão leal ao Partido Comunista chinês.

Fosso cultural

Por trás da divisão entre o movimento pró-democracia e as autoridades de Hong Kong, cada vez mais vistas como meras encarregadas de Pequim, está uma crescente animosidade entre a população do território e os chineses do continente.

Num artigo publicado esta segunda-feira no jornal South China Morning Post, a escritora e jornalista Audrey Jiajia Li fala na “deterioração das relações entre os dois lados na última década”.

“O resultado disso”, diz Li, é que “as diferenças culturais, emocionais e de acesso à informação aumentaram de forma significativa”.

A jornalista salienta que as imagens dos protestos das últimas semanas em Hong Kong não circularam na China continental, barradas pela grande muralha electrónica que filtra a informação do exterior. “As únicas narrativas visíveis são as dos media estatais, que culpam a ‘interferência externa’ pela situação”, diz Li, o que tem levado muitos chineses a acreditarem que os manifestantes de Hong Kong são “marionetas comandadas pelos Estados Unidos ao serviço da sua guerra económica contra a China”.

À medida que as novas gerações na China continental foram crescendo num clima de crescimento económico, olhando para o que se passava em Hong Kong como um sinal da decadência do território, foram também crescendo as tensões culturais entre os dois povos, o que foi estimulando os sentimentos nacionalistas.

“O resultado é triste”, diz a jornalista. “Termos depreciativos, como ‘gafanhotos’, são usados para descrever os chineses do continente”, acusados de fazerem subir os preços das casas, de provocarem a ruptura dos serviços de saúde e de agravarem a desigualdades entre ricos e pobres.

Numa sondagem feita em 2008, 41% dos jovens entre os 18 e os 29 anos, e 54% acima dos 30 anos, identificavam-se como chineses; na semana passada, uma sondagem da Universidade de Hong Kong mostrou que apenas 11% da população respondeu da mesma forma, um novo mínimo desde que há registos.

Com António Saraiva Lima

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