Airbnb: a história de uma boa ideia caseira que num instante mudou Lisboa

Um livro quer traçar o retrato de uma década de Airbnb em Lisboa, à boleia das profundas transformações que a capital atravessa. Em dez anos, esta plataforma passou da promoção de uma forma de economia colaborativa para um negócio que se “profissionalizou”. E isso é parte do problema. Lisboa e a Airbnb é apresentado esta terça-feira.

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Nuno Ferreira Santos

Um café numa esplanada no Largo de São Paulo, junto ao Cais do Sodré, deixará de o ser porque o senhorio não quer renovar o contrato de arrendamento à proprietária, nem sequer discutir o aumento da renda, que é já de mil euros por mês. Logo adiante, uma senhora num bar falou-lhes do fim do carácter do bairro, onde “já quase não mora ninguém”, tudo vendido para alojamento local, com pouco mais que bares, cafés, restaurantes e lojas de souvenirs no rés-do-chão. Não foi preciso uma grande volta pela cidade para um grupo de investigadores do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento de Território, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, juntamente com Ana Gago, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, da Universidade de Lisboa, terem registado marcas de profunda transformação na vida da capital e das suas gentes. Lisboa e a Airbnb (Book Cover), da autoria de José A. Rio Fernandes, Luís Carvalho, Pedro Chamusca, Ana Gago e Thiago Mendes, é apresentado esta terça-feira, às 18h30, na Fnac do Chiado.

À boleia de uma das principais plataformas de alojamento local (AL), a Airbnb, apresentam agora um “atlas” sobre a capital — à semelhança do que já tinham feito com o Porto —, composto por um conjunto de mapas e textos que retratam a sua entrada e evolução na área metropolitana durante a última década. Foi em 2009 que apareceram pela primeira vez prédios registados na plataforma – um em Santa Maria de Belém, um nas Mercês (hoje freguesia da Misericórdia) e outro em Alvalade. No ano seguinte, além de aumentarem os números de registos na cidade, este tipo de alojamentos estende-se para fora de Lisboa, aos concelhos vizinhos da Amadora, Cascais, Mafra, Odivelas, Oeiras, Sesimbra ou Sintra. Logo aqui, escrevem os autores, as “ruas perpendiculares da Baixa Pombalina apresentam os primeiros sinais de densificação, nomeadamente nos bairros de Alfama e Bairro Alto. [Nesta altura], um terço de toda a oferta da AML [Área Metropolitana de Lisboa] é composta por quartos privados ou compartilhados, em linha com a ideia da economia de partilha que lança a plataforma.”

Se em 2011, havia um total de 523 propriedades registadas nos 18 concelhos da AML, quatro anos depois, em 2015, esse número tinha já aumentado para 15.577 — 10.614 unidades listadas só no concelho de Lisboa. Ao mesmo tempo, os dados apresentam “sinais de apego” por zonas mais litorais como o centro histórico de Cascais, Estoril, Oeiras, o litoral de Sintra, Mafra, Almada e Sesimbra, mas também a vila de Sintra. 

Olhando para os dados de Outubro de 2018 (até ao dia 23, data definida pelo estudo), são já 48.785 unidades listadas na plataforma, sendo que 31.866 se localizam na capital. O número de hóspedes na cidade, escrevem os autores, aumentou 27% desde 2014 e, em 2018, o aeroporto registou um número recorde de chegadas — “14,5 milhões de pessoas, o que equivale a mais de 26 vezes o número de habitantes na cidade”. 

“Se em 23 de Outubro de 2018 todos os estabelecimentos estivessem ocupados, na sua capacidade máxima, teríamos mais visitantes do que residentes a dormir nas freguesias de Madalena, São Nicolau, Santa Justa, Encarnação, Santo Estêvão, São Paulo, Sacramento, Sé, Santiago, Mártires, Castelo, São Cristóvão e São Lourenço, Santa Catarina, São José, São Miguel e Coração de Jesus” – freguesias antigas que pertencem ao centro histórico. Isto sem contar com os hotéis, cujos estabelecimentos mais que duplicaram na última década, passando de 105, em 2008, para 218 em 2018. E que acabaram por contribuir para o processo de gentrificação e transformação do tecido social dos bairros históricos da capital — a freguesia de Santa Maria Maior, por exemplo, perdeu cerca de 2000 habitantes desde 2013. 

O melhor destino da Europa

A cidade tem-se posicionado como um dos melhores destinos europeus — os prémios que tem somado também ajudam à reputação. O centro da cidade, sobretudo, transformou-se em local de passagem, mais do que de paragem, de visitantes que chegam e partem. Como fica quem quer ficar, quem quer ter a sua casa no centro de Lisboa?

Rio Fernandes, que é também presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, diz que esta questão dos benefícios e prejuízos do AL “não é uma questão preta e branco”. É antes “um certo nível de cinzento” que é “interessante” até ao ponto em que começa a esbarrar “com outros valores de uma cidade, que não são apenas económicos. Até ao ponto que coloca em causa valores culturais, de bem-estar dos residentes”. A Rio Fernandes parece-lhe que “claramente Lisboa já atingiu” o limite suportável em termos de pressão do AL e que “faz todo o sentido haver uma acção política em torno da cidade que se pretende — que não é apenas uma cidade para turistas”. 

Em Lisboa, enquanto o regulamento municipal do Alojamento Local não entra em vigor — está até 2 de Julho em consulta pública —, a autarquia já suspendeu a emissão de registos nos bairros de Alfama, Mouraria, Castelo, Madragoa e Bairro Alto.

Olhando para os números de Lisboa, se se comparar o número de propriedades registadas na Airbnb com os seus habitantes, este “é muito superior a outras cidades europeias”, alertam os investigadores. “Estamos a falar de mais de 62 propriedades Airbnb por cada 1000 habitantes, em Lisboa. No Porto é de 61,7”, aponta Luís Carvalho. Para os investigadores, já se atingiram “claramente” os rácios que justificam uma intervenção da autarquia portuense.

A primeira legislação sobre o alojamento local entrou em vigor em Outubro e, no mês seguinte, a câmara de Lisboa travou os novos registos nestas zonas da cidade, mais pressionadas por este tipo de alojamentos. Tardou em sair uma legislação que desse poder às autarquias para intervir nestes negócios? Luís Carvalho, economista, avança com cautela: “Não sei se tardou porque o AL, nomeadamente o que vemos com o Airbnb, teve um crescimento muito rápido. Estamos a falar de uma realidade que aparece há dez anos”. Mas foi sobretudo a partir de 2013, sublinha o economista, que começou a “gerar problemas no território”. 

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Ilustração de Pedro Figueiredo presente no livro

Também na Europa se tenta lidar com o crescimento exponencial do AL. “Em Amesterdão, li há dias que estão a pensar não expandir o aeroporto. Do ponto de vista económico, é complicado, diria. É um pouco apostar no empobrecimento. É uma medida extrema”, diz Rio Fernandes. Veneza está a limitar as entradas e Barcelona está a proibir novos AL. “Claramente as cidades estão a despertar para o problema do AL”, nota o geógrafo.

 Ainda assim, observa, existe uma “memória recente” da decadência dos edifícios nos centros históricos de ambas as cidades, muito por causa do congelamento das rendas praticado durante décadas, que ninguém quer que volte. E isso faz com que hoje a reabilitação destes edifícios - “feita nem sempre da forma mais interessante”, ressalva, e à boleia de oportunidades de negócio no AL – seja vista como benéfica. “É por isso difícil algumas autarquias tomarem medidas de restrição. Mas penso que são fundamentais”, sublinha. Só que além da suspensão, “seguramente” serão necessárias outras medidas, sobretudo no que respeita à fiscalização, onde o geógrafo reconhece haverem “grandes dificuldades”. 

A profissionalização dos anfitriões

A ideia dos dois jovens designers americanos que, em 2007, decidiram receber hóspedes na sua casa em colchões de ar (airbed) e com pequeno-almoço (breakfast) incluído para ganhar um dinheiro extra, está longe da realidade em que se transformou a Airbnb, inicialmente vista como uma plataforma de partilha, em que se arrenda um quarto que não está a ser utilizado durante uns meses. Fizeram-se grandes empresas, grandes empresários. “Actualmente é um grande negócio”, diz Luís Carvalho, salientando um dado curioso que encontraram durante o estudo: os 20 proprietários com um maior número de propriedades exploram quase 3000 propriedades (6% do total) e são responsáveis por mais de 8% do rendimento total gerado na AML (mais de 24,4 milhões de euros anuais). “Se formos fazer um cálculo económico, por um lado, isto é bom. A curto prazo gera muita receita, muito imposto, muita economia informal”. “O rendimento que a Airbnb gerou, num ano, em Lisboa, é o triplo do que gerou no Porto. Estávamos a falar de cerca de 77,5 milhões. No caso de Lisboa chega quase aos 220 milhões num ano.”

Para Pedro Chamusca, a juntar-se a esta estratégia de contenção do AL, há que definir uma “política sobre a habitação. “Muita desta problemática coloca-se dentro daquilo que é habitação disponível para arrendamento temporário e de longa duração. O sucesso de qualquer política vai depender do que for a capacidade de intervenção, não sei se nacional ou municipal, neste sector da habitação. E o de criar alguma medida que obrigue a que uma determinada percentagem das habitações que estão no mercado de arrendamento seja destinado a um aluguer de longa duração”. 

Lisboa e a Airbnb não é um livro neutro, mas pretende ser isento, defendem os seus autores. “É um livro que quer levar a reflectir e não propriamente a tomar uma posição”, diz Rio Fernandes. Por isso, além da análise destes investigadores conta com contributos de outros especialistas e de políticos de diferentes partidos que ajudam a compreender o retrato da transformação de uma cidade. 

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