“Há uma montanha de discurso de ódio a erguer-se nos media e nas redes sociais”

Ofensas, insultos e ameaças são frequentes nas redes sociais e nos comentários dos media. Do anónimo ao político o discurso incendeia-se. Como responder? Quatro cidadãos de grupos alvo de ataques respondem. Hoje é Dia Internacional contra a Discriminação Racial.

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Ameaças de morte. Ameaças físicas. Ameaças contra a vida da família. Ofensas directas, sem pudor. Simulações de elogios que servem para humilhar. O mundo dos comentários das notícias e das redes sociais tem gente capaz de cometer crimes hediondos naquele momento, gente com raiva pronta a disparar e a envolver-se em ataques acesos. Carregados de mais ou menos agressividade, qual é de facto a dimensão do discurso de ódio, dos ataques racistas e xenófobos na Internet? É preciso chegar à ameaça para afectar realmente quem é o alvo directo? São apenas palavras? Qual é o impacto na vida das pessoas? Que medidas se deveriam tomar? Fechar as caixas de comentários dos media? Fiscalizar e denunciar quem comenta? Criminalizar? Multar? O PÚBLICO pediu a quatro pessoas que pertencem a grupos alvo do discurso de ódio, de ataques racistas ou xenófobos para desconstruírem e partilharem estratégias.

Esta quinta-feira comemora-se o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial. Vários colectivos organizam uma manifestação no Largo São Domingos, no Rossio, em Lisboa, às 18h.

"Parece que os racistas acordaram"

Raquel Borges, 19 anos, partilhou no Twitter um vídeo da manifestação do dia 21 de Janeiro, na Avenida da Liberdade, em solidariedade com a família do bairro da Jamaica, no Seixal, depois do episódio de conflito com a PSP. Recebeu vários comentários insultuosos a atacar todos os manifestantes ou a insinuar que tinham falta de educação. “Qualquer coisa no Twitter ou no Instagram é logo para ofender”, comenta. Por exemplo, é comum ver comentários com a insinuação de que não nasceu em Portugal. Responde: “Lá porque tenho uma cor diferente não quer dizer que não seja portuguesa.”

Lê também ofensas sobre o seu cabelo ou a maneira de falar de alguns amigos. “Gostam de tocar nos pontos fracos das pessoas. Basta colocar uma fotografia ou um vídeo e uma pessoa fazer um comentário negativo para virem mais. Há sempre mais comentários negativos.”

Também são repetidos os comentários que desvalorizam as denúncias que são feitas, com a acusação de “vitimismo”. “Basicamente estão-nos a dizer para esquecermos o que aconteceu. Estão a tentar silenciar-nos.”

Estudante de Design de Moda no Colégio D. Maria/Casa Pia de Lisboa, moradora em Oeiras, linha de Cascais, vai lendo no telemóvel os comentários de leitores e de comentadores do Facebook ao acontecimento. Num post com a partilha da notícia aparece: “Serviço militar obrigatório para educar esses meninos e meninas desnorteados e inculcar-lhes cidadania = amor orgulho e respeito pela pátria.” Raquel Borges sublinha que “o que [os manifestantes] estão a fazer não é desrespeitar mas a tentar melhorar o país em que estão ao manifestarem-se”. Estão “a ajudar ainda mais (…) Se fossem jovens brancos não iam falar de pátria.”  

Há alturas em que Raquel Borges tem paciência e responde. Noutras, os comentários “são tão ignorantes” que prefere não reagir ou bloquear a pessoa. “Dantes respondia mas depois vinham mais e mais comentários.” Por isso agora defende que o melhor é “não responder, bloquear ou denunciar”. “Senão torna-se uma bola de neve.”

Medidas que deviam ser tomadas? Aplicar multas seria uma hipótese. “Desde a manifestação parece que os racistas acordaram. Agora está num pico.”  

"Palavras usadas para retirar direitos"

Cyntia de Paula, 33 anos, presidente da Casa do Brasil de Lisboa, está habituada a ler comentários depreciativos sobre brasileiros, muitos deles focados nas mulheres. Numa notícia sobre a possibilidade da nova reitora da Universidade de Coimbra ser brasileira um dos primeiros comentários é: “E sabe falar e escrever português?” Alguém responde: “Sim, deve saber. O português do Brasil e dos PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] é tecnicamente a língua de Camões com as calças baixadas.” Um outro ainda: “Se realmente isso acontecer é a prova de que esse país é a incompetência total.”

Cyntia de Paula comenta: trata-se do preconceito de “que os migrantes têm que ocupar espaços pré-determinados”. “Como assim uma mulher migrante tem altas competências e vai ocupar um cargo de decisão?!”, ironiza.  

Numa outra notícia sobre uma brasileira que relatou ter sido vítima de agressão, lê-se o comentário: “Deve ter apanhado do seu chulo.” A frieza da frase é fruto do estereótipo da “brasileira hipersexualizada”, que vem para “o trabalho sexual, ao qual se juntam outros preconceitos e a sua descredibilização “enquanto vítima”. Esse discurso xenófobo e machista contra as mulheres brasileiras é muito presente na sociedade portuguesa, nota, e um “entrave gigante” no “exercício dos seus direitos fundamentais”.

“É necessário desconstruir estas ideias que causam discriminações”, diz. Porque na verdade, “as palavras com intuito de retirada de direitos dos outros causam imensos impactos”, refere.  

Para a dirigente associativa é importante existirem estratégias nacionais de combate a este discurso mas também políticas públicas com acções afirmativas: “Não adianta limitar sem transformarmos.” Caso contrário, até “pode gerar mais ódio porque a [pessoa pensa]: ‘a minha fala não foi ouvida’”.

Defende que órgãos como a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) tenham um papel mais activo e que os media intervenham nos comentários às suas notícias numa perspectiva de “contra-discurso” e de “assumir publicamente o papel transformador”. “Vejo mais isso do que a retirada das pessoas dali [fechando as caixas de comentários], que pode gerar raiva.”

ERC devia fiscalizar

Ao longo dos anos, o activista Mamadou Ba construiu uma carapaça. Está habituado a receber mensagens de ódio, mas nunca tão frequentes como desde que criticou a actuação da PSP no caso da Jamaica. Depois do post onde usava a expressão “bosta da bófia” se ter tornado notícia foi perseguido na rua por elementos do Partido Nacional Renovador (PNR) e filmado num vídeo que o partido de extrema-direita colocou no Facebook, razão que o levou a pedir protecção policial.

A avalanche de ataques foi tal que Mamadou Ba bloqueou o messenger a quem não pertence à sua rede de contactos.

Como Cyntia de Paula defende que os media deviam ter um sistema de moderação eficaz e reportar às autoridades competentes como a CICDR. Os media não criaram mecanismos para filtrar e moderar os comentários “tudo sob a capa da liberdade de expressão”. “A Entidade Reguladora da Comunicação [ERC] deveria ter um papel importante, formas de fiscalizar e ser o receptor dessas denúncias.”

Considera que qualquer cidadão que vir este tipo de comentários os devia guardar porque “isso é um património, um acervo” que serve de base ao poder legislativo. “Há uma montanha de discurso de ódio que está a erguer-se nos media e nas redes sociais.”   

E não se trata apenas de um par de comentadores, diz. “É perigoso desvalorizar a dimensão do ódio nas redes sociais.”

Quando saiu a notícia sobre o post de Mamadou Ba, alguém ameaçou: “Cuidado ao saíres de casa.” Noutro artigo escreveram “BOSTA DO PRETO que se julga um ser humano, só porque o “sosfascismo” andam a apregoar direitos humanos, como se isso fosse para estes parasitas, racistas, monhés e nharras gosmas. Assim a PSP lhe enfiasse um balázio entre os olhos e veríamos se restarias agora a grunhir dessa forma!” Mamadou Ba comenta: “Isto é ódio puro e duro que está presente em todas as esferas da Internet. Desengane-se quem pensa que é só desporto de quem está a brincar.”

Não é apenas entre anónimos que o discurso se radicaliza. Preocupa-o pessoas que “estão no espectro político mais higiénico”. Como o deputado do PSD João Moura, que escreveu no Facebook: “Bamos lá ber se nos entendemos. O Mamadou Ba chamou bosta à bófia, leia-se, polícia de merda, agora sente-se inseguro e pede segurança à polícia. Ó Mamadou e se fosses ba(rdamerda)?” Resposta do activista: “Goza com a fonética do meu nome num tom jocoso e indigno (…). O que ele quis dizer foi ‘vai para a tua terra’, mas mesmo assim o verniz estalou.”

Comentadores “só querem vomitar o seu ódio"

Ódio destilado contra os ciganos é o que Piménio Ferreira, de 32 anos, activista e engenheiro físico, frequentemente lê nos comentários a notícias ou nas redes sociais. Difícil é encontrar quem defenda os ciganos entre as dezenas de comentadores: “Infelizmente são as pessoas que têm ódio que têm mais engajamento.”

Houve uma altura em que comentava activamente nas redes sociais, queria desconstruir e contribuir com comentários positivos. “Porque era uma enxurrada de ataques. O que mostra que as pessoas que estão nos comentários não querem aprender, só querem vomitar o seu ódio.”

Desistiu porque percebeu que “estava a ser instrumentalizado para criar polémicas”: “Os próprios media lançam títulos sensacionalistas, matérias provocatórias para que as pessoas comentem. Participar nesse lamaçal só me fez mal psicologicamente. É muito ódio, deixava-me sempre atordoado. E estava a contribuir para dar publicidade a uma coisa negativa.”

Exemplos: num comentário a uma notícia sobre o bairro das Pedreiras e do Pombal, em Beja, um leitor indigna-se com as queixas sobre a habitação social, afirmando que teve de construir a casa “a pulso” e trabalhar “durante 15 anos”. “Estas pessoas vivem numa precaridade habitacional tremenda. 80% da população cigana não pode escolher onde viver, estando reféns de nomadismo forçado ou habitação social que se tornou em autênticos guetos (…). Há quem ache errado as pessoas estarem a queixar-se de não viver nas melhores condições: é de uma desumanidade atroz”, comenta o investigador no Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Outro leitor formula uma série de perguntas sobre quantos ciganos existem em Portugal, quantos recebem o Rendimento Social de Inserção (RSI) ou quantos pagam os impostos num tom aparentemente inócuo mas que o investigador caracteriza como “ainda mais perverso” e “traz a ironia e tem muita maledicência”. Há menos ciganos a receber RSI do que aqueles que precisam, sublinha, até porque a percentagem de ciganos a viver no limiar de pobreza ronda os 80%; e sobre os impostos, devolve a pergunta: “Espero que [o leitor] tenha o seu IRS em dia porque eu tenho o meu e sou cigano. Como se não houvesse outras pessoas mais importantes para perguntarmos se pagam impostos…”.

Deve-se, então, não responder? “Mais importante é falar, conquistar visibilidade e não ficar à espera de reagir”, afirma. “Devia-se acabar com a impunidade dos comentários. Em alguns países existe uma polícia cibernética. Podíamos pensar em criar uma estrutura para descobrir e punir estas pessoas, porque tem consequências. Não precisa de ser explícito ou dizer ‘vamos matar estas pessoas’ para ter este efeito. Os media também têm a responsabilidade de pensar na forma como querem contribuir e como produzem as suas notícias.”

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