Há cada vez mais gente a negar o genocídio de Srebrenica e o Canadá quer tornar isso ilegal

Há criminosos de guerra a reintegrar a vida política e políticos que desmentem factos com pouco mais de 20 anos e muitas provas. Para 74% dos sérvios da Bósnia, Radovan Karadzic, condenado pelo TPIJ por "crimes sistemáticos contra bósnios muçulmanos e croatas", é um herói.

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Duas muçulmanas junto aos caixões dos seus familiares, parte das vítimas identificadas em 2016 Reuters/DADO RUVIC

Sempre houve negacionistas, mas a negação do genocídio de Srebrenica, reconhecido por dois tribunais internacionais, costumava estar limitada a determinados círculos académicos sérvios e a partidos pequenos e pouco conhecidos. Agora, diz o investigador Hikmet Karcic, nascido em Sarajevo, “tornou-se mais mainstream”.

Fora dos Balcãs e nos Balcãs. Segundo uma sondagem recente, 66% dos sérvios da República Srpska (RS) negam o genocídio e 74% consideram Radovan Karadzic um herói: antigo presidente da então autoproclamada RS (uma das duas entidades da actual Bósnia-Herzegovina), foi condenado em 2016 pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) por “crimes organizados e sistemáticos contra bósnios muçulmanos e bósnios croatas”. Como muitos outros, Karadzic fala de Srebrenica como “um mito”.

Em Novembro, a primeira-ministra sérvia, Ana Brnabic, afirmou à emissora alemã Deutsche Welle que o massacre de Srebrenica não foi um genocídio. O entrevistador não esperava a resposta de Brnabic mas poucos bósnios terão ficado muito surpreendidos.

Meses antes, Milorad Dodik, o ultranacionalista que presidia à RS e agora é o líder da presidência tripartida da Bósnia-Herzegovina (constituída por um bósnio e um croata eleitos pela Federação da Bósnia-Herzegovina mais um sérvio eleito pela República Srpska), decidiu revogar uma decisão do Governo da RS de 2004 – a aprovação de um relatório que significou o primeiro e único reconhecimento por parte dos sérvios da Bósnia da dimensão da maior atrocidade cometida na Europa depois da II Guerra.

Quando ainda era só presidente da RS​, Dodik também decidiu proibir que as escolas ensinassem sobre o genocídio e o cerco das forças sérvias bósnias a Sarajevo – um cerco que durou quase quatro anos e fez perto de 14 mil mortos, para além de ter provocado milhares e milhares de refugiados. “Isto não é correcto e não será ensinado aqui”, afirmou.

Hikmet Karcic, que investiga genocídios, nota em declarações à Al-Jazira que também se tornou mainstream “entre certos círculos da esquerda ocidental [negar o genocídio de Srebrenica], o que é consistente com o seu apoio a [Slobodan] Milosevic [ex-Presidente da Sérvia]” nos anos 1990. “Actualmente, a islamobofia está a crescer e está cada vez mais relacionada com a negação do genocídio, com a sua relativização e, em alguns casos, até com a sua justificação”.

Quinta-feira, um tribunal federal suíço anulou uma condenação de discriminação racial a um homem não identificado que tinha publicado artigos que negavam o genocídio dos muçulmanos bósnios. Os juízes consideraram que “não havia incitação à violência ou ao ódio” nos textos e que a condenação do autor violava a sua liberdade de expressão. A Suíça é um dos nove países na Europa que proibiram a negação do genocídio de Srebrenica.

Reabilitação política

Parlamento Europeu, antigos responsáveis do TPIJ e o conselheiro especial da ONU para a Prevenção do Genocídio, todos têm manifestado a sua preocupação pela actual reescrita da história acompanhada da reabilitação pública de condenados por crimes de guerra na Sérvia.

Há duas semanas, o procurador Serge Brammertz disse ao Conselho de Segurança da ONU que “passos positivos estão a ser minados por comentários levianos de responsáveis que negam o que já foi estabelecido para lá de todas as dúvidas nos tribunais, e descrevem como heróis homens que cometeram as mais sérias violações da lei internacional”.

Desde 2012, quando o Presidente Aleksander Vucic e o seu Partido Progressista chegaram ao poder, as autoridades sérvias têm recebido como heróis nacionais criminosos de guerra entretanto libertado e contribuído para que voltem a integrar a vida pública e política. No início de Dezembro, a associação de veteranos da República Srpska enviou um pedido a Dodik para nomear como ministro da Defesa da Bósnia Milan Jolovic, comandante da unidade paramilitar “Lobos do Drina” que participou no ataque ao enclave onde milhares se julgavam protegidos por capacetes azuis das Nações Unidas.

Aprender com a história

Por tudo isto, o Instituto de Investigação sobre Genocídio do Canadá (IRGC) lançou uma petição online que pode ser assinada até 10 de Janeiro e que depois será enviada ao Governo, pedindo que se aprove uma lei a criminalizar a negação do genocídio de Srebrenica. O país já adoptou duas resoluções que reconhecem o que aconteceu naqueles dias como um genocídio. Emir Ramic, director do IRGC, lembra que a primeira levou cinco anos por ter sido rejeitada pelo Partido Conservador, sob pressão de sérvios e russos.

“Negar o genocídio de Srebrenica é muito perigoso. Temos de aprender com a história, reconhecer [o que aconteceu ali] e chamá-lo pelo seu nome”, defende Ramic. “Os direitos humanos estão sob ataque em todo o mundo”, sublinha o académico nascido na Bósnia, e é por isso que o Canadá daria “uma grande contribuição” no combate ao negacionismo se o criminalizasse, sustenta.

“Os bósnios muçulmanos são o único povo na Europa que sobreviveu à agressão e ao genocídio [desde o Holocausto] e está exposto a uma discriminação inaceitável, não só na terra mãe como na diáspora”, acusa, citado pela Al-Jazira.

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Memorial com os nomes de todas as vítimas de Srebrenica Dado Ruvic/Reuters

Não esquecer

A petição pode ser assinada no site do Parlamento canadiano e é patrocinada pelo deputado Brian Masse, do Novo Partido Democrático (social-democrata). Masse justifica a necessidade da lei com a “negação do Holocausto, do Ruanda e de Srebrenica”. “É muito doloroso para as vítimas e para as famílias dos sobreviventes continuarem a lutar por algo que se baseia em factos. A iniciativa vai ajudar a prevenir a negação e a criar consciência para que nunca nada disto seja esquecido.”

“Em Julho de 1995, mais de 8372 bósnios muçulmanos em Srebrenica, principalmente homens e rapazes, foram assassinados a sangue frio pelo Exército e as Forças Polícias da República Srpska”, lê-se na petição. O relatório de 2004, que Dodik considera “não pertinente, muito selectivo, errado, sem provas, parcial”, contém os nomes de 7806 vítimas.

Mais de 6500 estão enterradas no Cemitério de Potocari e todos os anos mais algumas são identificadas e enterradas – este ano 36 juntaram-se aos que lá se encontram.

Theodore Mero, que presidia ao TPIJ, afirmou também em 2004 que “as forças sérvias bósnias cometeram genocídio ao tentarem eliminar uma parte dos bósnios muçulmanos”. Em particular, “visaram a extinção dos 40 mil bósnios muçulmanos que viviam em Srebrenica, um grupo que era emblemático do conjunto dos bósnios muçulmanos”.

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