Estado perdeu o rasto a cinco jovens forçados pelos pais a mendigar

Três raparigas e dois rapazes foram acolhidos numa instituição quando os pais foram detidos por maus tratos e tráfico de seres humanos. Os adultos, de nacionalidade romena, estão a ser julgados. Jovens estão a ser procurados em vários países.

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Paulo Ricca

Quando os pais foram detidos, em 2017, no Porto, os quatro filhos que seriam por eles forçados a mendigar em falsos peditórios na rua e a roubar em centros comerciais foram-lhes retirados. As actividades aconteciam por todo país e arrastavam-se desde 2011. Uma outra criança foi recrutada pelo mesmo casal a partir de 2016. 

As cinco são de nacionalidade romena. Foram acolhidas, de emergência, numa instituição para crianças e jovens em perigo a 15 de Novembro de 2017, dia em que os pais e um terceiro adulto foram detidos pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

A operação do SEF decorreu num apartamento do Porto, com apenas dois quartos, no qual as seis crianças viviam com sete cidadãos adultos, todos romenos. Três adultos foram presos e quatro outros ficaram em liberdade. O casal e um terceiro detido estão a ser julgados no Tribunal de S. João Novo, no Porto.

Os jovens ficaram sob responsabilidade do Estado português, por decisão judicial. As três raparigas e os dois rapazes – agora com idades entre os 12 e os 18 anos – desapareceram entretanto do lar de acolhimento. O Estado português não sabe se estão em território nacional.

Um alerta sobre estes jovens terá sido lançado pelo Governo francês para todas as polícias europeias – o que acontece quando existem suspeitas de estarem a ser exploradas por grupos criminosos, para fins laborais, sexuais, ou ainda para a mendicidade (como aconteceria em Portugal).

Contactado, o gabinete de imprensa do SEF explica que “actualmente estão difundidos pelo Sistema de Informação dos países europeus do Espaço Schengen vários pedidos de localização judicial dos menores desaparecidos, por determinação do tribunal de Família e Menores”.

Em respostas enviadas ao PÚBLICO, esclarece ainda que “após a detenção do grupo criminoso, o SEF colaborou com o Tribunal de Família e Menores do Porto e Directoria da Polícia Judiciária do Porto, no sentido de prestar toda a informação possível” no que diz respeito a “moradas conhecidas e outra informação considerada relevante para eventualmente apurar o paradeiro dos menores”.

As autoridades tentaram descobrir o paradeiro dos jovens, sem sucesso, e por isso o Tribunal de Família e Menores do Porto arquivou, em 5 de Junho de 2018, os processos de protecção abertos quando os adultos foram presos.

Às duas raparigas e dois rapazes que mendigavam e também roubavam desde 2011 – por ordem dos pais, segundo o Ministério Público – juntara-se uma quinta menina (então com 14 anos) que o casal foi buscar à Roménia em 2016. No seu caso, a mãe deu consentimento para vir para Portugal e ficar a cargo de Ion Haralampie (de 37 anos) e Alina Calin (de 35 anos), os dois adultos, identificados como pais das quatro crianças. Nesta actividade, também participava um terceiro adulto, Tudoroi Radu, de 22 anos.

Os três estão a ser julgados por quatro crimes de maus tratos, utilização das crianças para a mendicidade e por um crime de tráfico de seres humanos e associação criminosa. As alegações finais dos advogados e do Ministério Público (que antecedem a leitura da sentença) estão previstas para esta quarta-feira.

Sinais de alerta

Oito anos passaram desde que a família chegou a Portugal em 2010, vinda da Roménia. Os pais iniciaram os dois filhos e as duas filhas, a partir dos 10 anos, numa actividade delituosa que se prolongou entre 2011 e 2017, de acordo com o despacho de acusação, consultado pelo PÚBLICO.

Nesses seis anos, houve pelo menos uma intervenção da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) do Porto Oriental. As crianças terão sido sinalizadas pelo estabelecimento de ensino por abandono escolar.

Em 29 de Abril de 2013, foram abertos na CPCJ do Porto Oriental quatro processos para as crianças, refere a CPCJ de Porto Central. A mãe foi chamada à CPCJ, de acordo com a acusação. Mas a actividade de exploração da mendicidade continuou. 

Seis meses depois, em Outubro de 2013, o SEF, as CPCJ e a PSP tinham realizado uma visita à residência da família. Os processos foram no entanto arquivados, de acordo com informações da CPCJ do Porto Central, que não esclareceu em que data e por que motivo esses processos foram encerrados. Em 2016, foram abertos outros dois processos relativos aos dois rapazes, mas igualmente arquivados.

Numa dessas vezes, referidas no despacho de acusação como elemento de prova, a menina foi encontrada e disse que o pai a incumbira desse peditório. Ainda de acordo com acusação (deduzida em Abril deste ano), antes e depois dessa sinalização em 2013, duas destas crianças passaram pelo menos 12 vezes (cada uma delas) por esquadras da PSP, entre 2011 e 2015: da cidade do Porto, em Matosinhos, em Leiria, uma em Aveiro, Leça da Palmeira, Vila das Aves (concelho de Santo Tirso), Caldas da Rainha, Coimbra, Santa Maria da Feira, Rio Tinto (concelho de Gondomar) e Vila Nova de Gaia. As situações registadas envolveram uma das filhas do casal, desde os 11 anos, e de um dos filhos desde que este tinha 13 anos. 

SEF avisado em 2014

Também o SEF, que iniciou em 2016 a investigação que resultou na detenção dos suspeitos, já havia sido informado da situação específica da menina em 2014. Uma lista de registos da PSP consultada pelo PÚBLICO refere essa comunicação.

“Um expediente da PSP foi enviado por correio electrónico”, a dar conta de que a criança (então com 13 anos) tinha sido interceptada num falso peditório e entregue a um familiar “contactado [pela PSP] e posto ao corrente de toda a situação”, lê-se na comunicação feita.

Contactada, uma fonte oficial da Direcção Nacional da PSP garante que quando as crianças eram interceptadas em falsos peditórios eram levadas para a esquadra; e era dado conhecimento às comissões de protecção do Porto Oriental ou Porto Central.

Também houve ocasiões em que isso não aconteceu. Como entre 2011 e 2013 e mesmo depois disso, em 2014 e 2016, de acordo com os mesmos registos que, nesses casos, referem que as crianças eram entregues ao pai ou à mãe, ou ainda a um adulto que se apresentava como familiar dos menores.

"Elevados lucros" 

"Todos os arguidos enriqueceram à custa dos peditórios e dos ilícitos praticados", lê-se no despacho do juiz de instrução criminal que decidiu levar os três arguidos a julgamento. Estas actividades rendiam-lhes “elevados lucros económicos”, refere ainda o despacho de pronúncia do juiz que envia os suspeitos para julgamento.

Esses lucros ascenderam – entre Janeiro de 2011 a Abril de 2017 – a pelo menos 170 mil euros, que se encontravam numa conta bancária e apreendidos a favor do Estado. Com esses lucros pagavam “as rendas das diversas residências que foram tendo ao longo do tempo”, e ainda as “numerosas viagens ao estrangeiro” ou a aquisição de “diversos automóveis” bem como o carregamento de telemóveis para comunicações.

O pai das crianças teve pelo menos cinco carros registados – entre 2008 e 2014 – e em Dezembro de 2017 tinha em seu nome uma conta à ordem mais de 18 mil euros. Nesses seis anos, os arguidos também recebiam prestações da Segurança Social.

Vindos da Roménia em 2010, Ion e Alina obrigariam os filhos a pedir esmolas, fazendo-se passar por crianças pobres ou incapacitadas. Era um modo de vida imposto às duas filhas e dois filhos, num primeiro momento, e mais tarde a uma outra criança que o casal foi buscar à Roménia.

Já em 2011 tinham trazido da Roménia uma outra criança na altura com 14 anos, mas não ficou abrangida neste processo porque, explica o Ministério Público no despacho de acusação consultado pelo PÚBLICO, a conduta referente a esta criança configura um crime de tráfico de pessoas para a exploração da mendicidade e para a prática de outros crimes, cuja punibilidade apenas foi introduzida na alteração legislativa ao Código Penal em 2013.

O Ministério Público considera, no despacho de acusação, que o casal agiu de forma conjunta e intencional, "privou os filhos de escolaridade, obrigando-os a viver numa casa sem condições de higiene, nenhuma privacidade e total desarrumação, usando-as desde tenras idades em actividades delituosas que sabiam que eram proibidas".

Davam-lhes ordens dizendo-lhes onde agir, transportavam-nas e colocavam-nas onde queriam que elas roubassem ou pedissem esmola – de Norte a Sul em zonas como Seixal, Maia, Matosinhos, Tavira, Caldas da Rainha, Aveiro, Braga, Almada, entre outros, além de Lisboa e Porto. Munidas de folhetos, as crianças faziam-se passar por membros de uma "associação regional para os incapacitados surdos e mudos e para crianças pobres” com o suposto objectivo de construir um centro nacional e internacional para essas pessoas.

Isolados do mundo

As crianças não iam à escola. Era assim, mantendo os filhos isolados que os arguidos “melhor os controlavam” e impediam influências externas sobre as crianças ou a possibilidade de elas partilharem com alguém o seu modo de vida. Também porque desta forma “dispunham deles a tempo inteiro”, refere o procurador titular do processo.

Em 2017, 61 crianças em perigo foram sinalizadas por mendicidade, de acordo com o relatório CASA –? Caracterização Anual do Sistema de Acolhimento publicado pelo Instituto da Segurança Social. Em 2016, tinham sido 88.

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