"Estou farta de tanto Verão e de passar o tempo a abanicar-me"

Em Castro Verde os agricultores vão arrancar para as sementeiras com as terras secas, mas o receio maior é que as altas temperaturas venham a afectar o abeberamento do gado.

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ADRIANO MIRANDA

A ida ao mercado fazer as compras do dia, é uma tarefa que Ermelinda Faustino vai deixar para alguém da sua família que suporte melhor “este tempo que nos põe doidos”. O sol quente e o céu limpo espelham um brilho que enche os olhos de humidade a quem não usa óculos escuros. “Estes meus 78 anos já não dão para mais” soletra a idosa, arfando a cada palavra dita. Arrasta os pés e pousa os sacos das compras, poucos metros andados, com receio de tropeçar e acabar a fazer curativos no centro de saúde. As noites mal dormidas cobrem-lhe o corpo de cansaço e desabafa: “Olhe à volta. Anda tudo meio tonto com estes calores. É do clima, dizem. Estou farta de tanto Verão e de passar o tempo a abanicar-me.”

Francisco Palma, agricultor e presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo, também tem as suas razões para não gostar das alterações climáticas. “Mas não temos outro remédio senão adaptarmo-nos” à nova realidade, observa pragmático. Por esta altura, no ano passado, já se temia que o Verão prolongado e a falta de chuva viessem fazer das suas. Este ano o mesmo problema pode repetir-se. “Neste momento o que é anormal são as temperaturas excessivas para a época, 5 graus acima da média” precisa o agricultor admitindo que a região “está em seca sazonal”, que é cada vez mais comprida. “Começa em Maio e prolonga-se por Outubro”. Este ano “tivemos temperaturas abaixo da média em Junho e Julho e agora suportamos 5 graus Celsius acima da média” acentua o agricultor. O efeito imediato deste estado de coisas reflecte-se nas terras que vão receber as sementeiras de Outono/Inverno, quando se sabe que o final de Outubro, Novembro e Dezembro, são meses “cruciais” para fazer as culturas, vinca Francisco Palma.

Mais a sul, na chamada região do Campo Branco, conhecida por ser o território onde nidificam e circulam um numeroso leque de aves estepárias, José da Luz, presidente da Associação de Agricultores, recorda que há décadas atrás, nesta altura do ano, “chovia com alguma regularidade”. E quando acontecia era um “bom prenúncio porque iniciávamos as sementeiras mais cedo. Este ano houve uma trovoada e, mais nada” compara o agricultor, que ainda aspira por uma “outonada bem molhada”. A experiência que lhe foi transmitida nos muitos anos que já leva de vida no campo, em terras pobres, esqueléticas e secas, ensinaram-lhe como uma forte chuvada em terra quente, era bom. “Garantia sementeiras seguras, mas isto deixou de acontecer há muitos anos” refere conformado.

Mas o pior pode vir a acontecer a quem faz pecuária. Não há erva, os pastos estão secos e já se alimentam os animais à mão. É, contudo, no abeberamento do gado que se concentram as maiores preocupações. “Ainda não temos problemas até porque investimos na abertura de furos e construção de charcas, mas se a estiagem se prolongar estamos mal”. As altas temperaturas também são más para as aves estepárias que vivem sobretudo das culturas feitas pelo homem, mas que estão comprometidas.

“Não podemos esquecer que o verão começou tarde e que tivemos chuva forte até Julho” realça Pedro Salema, presidente do conselho de administração da EDIA, recordando que a situação que se está viver, não é inédita. “Já tivemos que regar até Dezembro” observa.

Neste contexto de tempo quente, o sistema de rega do Alqueva “tem cumprido”, fornecendo água às pessoas que a pedem e a precisam, garante o presidente da EDIA. Ter 82% do volume de água armazenado em Alqueva no final de uma campanha de rega, “é tranquilo para nós”, analisa Salema, salientando que houve a preocupação de antecipar o fornecimento de água para evitar situações de bloqueio. 

As alterações climáticas são uma realidade. “Em todo o mundo estão a ser batidos recordes de temperaturas mais elevadas” observa Peres de Sousa, professor na Escola Superior Agrária de Beja e também agricultor, advogando a necessidade urgente de aumentar a eficiência da rega para que a água chegue a um número crescente de agricultores.

Alqueva concentra as maiores expectativas relativamente à garantia de água para 170 mil hectares. O docente frisa que a opção pelo regadio rapidamente se estendeu às áreas agricultadas no exterior dos actuais blocos de rega do Alqueva, mas lembra que há muito a fazer para “não exaurir um recurso que é escasso” e num tempo em que as ondas de calor são mais intensas e prolongadas. A nova realidade, que tudo indica veio para ficar, coloca uma interrogação sobre o que fazer a 1,7 milhões de hectares da Superfície Agrícola Útil do Alentejo. O regadio na região não ultrapassa os 250 mil hectares.

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