Mudança cultural não é mandar limpar matos

Não sei se António Costa alguma vez acreditou que roçar mato, fazer umas mexidas nas cúpulas da Autoridade Nacional de Protecção Civil e criar uma Estrutura de Missão para a Gestão dos Fogos Florestais constituem "mudança cultural".

No início de Junho, em visita a Monchique para mais uma salvífica "limpeza de matos", o primeiro-ministro António Costa vangloriava-se da "mudança cultural" que trespassava o país de norte a sul. Este frenesim, que levou mais de meio Governo a roçar mato em fins-de-semana primaveris, sofreu forte machadada com nova devastação na serra algarvia. Era esperado. Tudo falhou como sempre. Pior ainda, porque houvera uma previsão de risco muito elevado – que serviu para nada – e confirmou-se, pela enésima vez, um deplorável sistema de combate pseudo-voluntário.

Não sei se António Costa alguma vez acreditou que roçar mato, fazer umas mexidas nas cúpulas da Autoridade Nacional de Protecção Civil e criar uma Estrutura de Missão para a Gestão dos Fogos Florestais constituem "mudança cultural". Para mim, não: tal implicaria um novo paradigma, rompendo com o passado, assumindo as novas realidades sociais e económicas, e sem andar a "culpar" factores conjunturais (o Verão) e estruturais (propriedade privada, êxodo rural, minifúndio, etc).

A mudança cultural passa, na minha opinião, por aceitar que temos mais do que floresta – existe algo complementar mas fundamental: os espaços florestais. Não são a mesma coisa, e pensar assim é um erro colossal. Os espaços florestais não são a mera soma de parcelas. Os espaços florestais "oferecem" tipos de bens, serviços e/ou produtos bastante distintos dos obtidos na exploração agro-silvo-pastoril tradicional, sendo que, em muitos casos, são disponibilizados à sociedade independentemente da intenção ou vontade dos seus múltiplos proprietários. Estamos a falar, por exemplo, do contributo dos espaços florestais para o ar limpo, a água de qualidade, a recarga dos aquíferos, a fruição visual, o espaço de recreio e a conservação da biodiversidade. Do ponto de vista económico, os espaços florestais são fornecedores de externalidades positivas.

Por regra, considera-se bom para a sociedade a existência de externalidades positivas. É errado! E aqui está o busílis. Constituem uma falha de mercado como as externalidades negativas (e.g., incêndios) – e, no caso da floresta, considero ser um forte factor agravante do risco de fogos catastróficos. E, pior ainda, se persistirem, as externalidades positivas (afectando a rentabilidade dos proprietários florestais, sobretudo os pequenos) podem propiciar factores que levam ao aumento das externalidades negativas (incêndios). E com incêndios perdem-se também os bens fornecidos à sociedade pelos espaços florestais. Donde resulta aqui que se esquecermos o papel dos espaços florestais, não compensando economicamente os proprietários das parcelas que os constituem, temos o desastre como fado. Em suma, "mudança cultural" será o Estado, independentemente da sua ideologia, assumir a intervenção directa e não ser (mau) regulador coercivo e produtor de legislação contraproducente.

Exemplo paradigmático encontramos no "controlo dos matos": quando o Estado impõe aos proprietários florestais os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações alheias, não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade. Por um lado, essa obrigação não se baseia em estudos estratégicos de prevenção, nem existe a garantia de execução face ao absentismo. Por outro lado, beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações e vizinhos isentos dessas operações. E mesmo se fosse eficaz, manter-se-ia a iniquidade, pois quem faz a limpeza nem sequer é compensado por esse serviço (a criação de uma externalidade positiva e a redução de uma negativa) com a agravante de perda de rendimento potencial.

Defendo que deve ser o Estado, por razões de eficácia, eficiência e justiça, a exercer essas funções, eliminando externalidades negativas e positivas. É para isso que, do ponto de vista da Economia, serve um Estado. É para casos de crise e desastre social contínuo que serve um Estado. E não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas a exercer a gestão dos espaços florestais, porventura entrando em áreas privadas, como sucede em outros casos, através de servidões administrativas. Isso implicaria uma inversão do que se anda a fazer (mal) nas últimas décadas. Ou seja, a Administração Pública do sector florestal deveria concentrar as funções fundamentais, eliminando a dispersão, numa estrutura autónoma que agregasse equipas de técnicos (silvicultores, sapadores, vigilantes e bombeiros) com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis, de vigilância e controlo de acessos, e ainda de supressão de incêndios. Integraria também um mecanismo de compensação (por perequação) dos proprietários dos terrenos alvo de intervenções de controlo de vegetação.

Um sistema deste género implicaria elevados investimentos e ruptura de status quo, mas incomensuravelmente menores do que as externalidades negativas existentes. E faria, sem dúvida, entrar na Economia, para benefício de todos, Ambiente incluído, uma parte significativa dos propalados seis mil milhões de euros de Valor Económico Total (VET) da floresta portuguesa – bem acima dos mil milhões de euros expostos nas Contas Económicas da Silvicultura. Fazer isto, sim, seria caminhar para uma verdadeira "mudança cultural".

Licenciado em Engenharia Biofísica (Universidade de Évora) e Economia (ISEG)

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