O mistério da carta-portulano

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A Carta Pisana (cerca de 1280) Biblioteca Nacional de Franca

Encontra-se guardado na Biblioteca Nacional de França, em Paris, um velho pergaminho medieval contendo a mais antiga carta náutica que chegou aos nossos dias: a Carta Pisana. Embora em mau estado de conservação e de difícil legibilidade, a Carta Pisana é um dos mais preciosos tesouros do património cartográfico mundial e tem vindo a ser estudada, durante mais de um século, pelos historiadores da cartografia. A data precisa em que foi desenhada e o processo utilizado na sua construção são alguns dos mistérios que continuam por desvendar.

Uma datação recente, realizada através da técnica do carbono radioactivo (carbono-14), indica a data de 1245 como a mais provável para a morte do animal cuja pele foi utilizada para preparar o pergaminho. Contudo, a análise do conteúdo cartográfico prova que a carta não poderia ter sido desenhada antes de 1279, uma vez que é representada uma cidade que foi fundada nessa data: Palamos. A aparente contradição pode ser resolvida de duas formas: ou a pele do animal só foi utilizada algumas décadas depois de ser preparada ou a Carta Pisana é um palimpsesto, isto é, o pergaminho foi primeiro empregado para outro propósito, e depois raspado e tornado a utilizar. Esta questão continua por esclarecer.

Outro aspecto que tem intrigado os estudiosos da Carta Pisana é a sua extraordinária exactidão e pormenor, quando comparada com a cartografia tradicional da época, sugerindo que um longo período de desenvolvimento, do qual nenhum indício material sobreviveu, a tenha precedido.

Muitas outras cartas náuticas deste tipo, a que se convencionou chamar cartas-portulanos, são hoje conhecidas. Tal designação, sugerida pelo historiador português Armando Cortesão, expressa a sua estreita relação com os roteiros náuticos da época, os portulanos, onde os pilotos registavam os rumos e as distâncias entre os portos do Mediterrâneo e do mar Negro.

As cartas-portulanos mais antigas, como a Carta Pisana, foram desenhadas cerca de 1300, por cartógrafos italianos. O seu carácter instrumental está bem patente nas soluções gráficas utilizadas. Por exemplo, no facto de os nomes dos lugares costeiros (os únicos normalmente representados) estarem escritos para dentro da linha de costa e perpendicularmente a esta, a fim de deixar livres as áreas marítimas; e também na representação de uma densa trama de linhas, sobreposta à representação cartográfica, cujas orientações relativamente ao norte se encontram codificadas através de cores: preto para os pontos cardeais e intercardeais (norte, nordeste, este, sudeste, sul, etc.), verde para os pontos colaterais (nor-nordeste, és-nordeste, etc.) e vermelho para os restantes. Em conjunto com a escala gráfica de milhas italianas, estas linhas destinavam-se a auxiliar o piloto na leitura e traçado dos rumos e distâncias entre os portos.

Ao contrário do que se faz nos nossos dias, em que se usam réguas e lápis de grafite para planear e registar a navegação, naquela época não se fazia qualquer registo gráfico sobre a carta. O lápis de grafite não tinha ainda sido introduzido e os pergaminhos eram demasiado valiosos para que se escrevesse a tinta sobre eles. Todas as operações gráficas de leitura e transporte de rumos e distâncias eram realizadas com um par de compassos de pontas secas. As posições das embarcações eram registadas picando a carta ou deixando cair sobre ela um pequeno pingo de cera.

É consensual entre os historiadores da cartografia que as cartas- portulanos eram construídas a partir de informação de navegação: rumos fornecidos pela bússola e distâncias estimadas pelos pilotos no mar. Contudo, a confirmação deste facto só se tornou possível recentemente, através de modernas técnicas digitais de análise geométrica e simulação numérica. Hoje sabemos, por exemplo, que as distorções que afectam a orientação das linhas de costa nas cartas- portulanos se devem, em grande parte, ao efeito da declinação magnética nas direcções fornecidas pela bússola. Isto é, ao facto de as bússolas não apontarem exactamente para o norte geográfico e de esta diferença variar de lugar para lugar e também ao longo do tempo. Conhecendo, através de modernos modelos geomagnéticos, de que modo variava a declinação magnética durante a Idade Média, tornou-se possível fazer uma primeira estimativa da data em que os primeiros protótipos – nos quais a Carta Pisana se baseia – foram desenvolvidos, durante a primeira metade do século XIII.

Estes e outros aspectos serão discutidos pelos especialistas mundiais sobre a matéria, a 7 e 8 de Junho próximos, em Lisboa, durante o II workshop internacional Sobre a Origem e Evolução das Cartas-portulanos.

 

Esta série está a cargo do Projecto Medea-Chart do Centro Interuniversitário de História da Ciência e Tecnologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação

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