Um conflito “de vida ou morte” entre europeístas e soberanistas

Um conflito táctico entre a Liga e o Presidente Mattarella está a transformar-se numa crise de grandes proporções que ameaça mudar a face da Itália e a sua participação na União Europeia

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Cottarelli foi encarregue de formar um "governo neutro" ANGELO CARCONI/EPA

A Itália mergulhou na mais grave crise política desde a República (1946) ou a Constituição (1948), prevendo-se um “verão quente”, com extrema polarização política e uma campanha eleitoral sem tréguas entre “europeístas” e “soberanistas”, em torno do euro e da UE, com reflexos sobre a Europa. A mobilização de rua começa já esta semana.

No domingo à noite, o Presidente Sergio Mattarella recusou o nome do economista Paolo Savona para o cargo de ministro da Economia e Finanças, proposto pela coligação entre o Movimento 5 Estrelas (M5S) e a Liga. O primeiro-ministro indigitado, Giuseppe Conte, renunciou e Mattarella logo encarregou o economista Carlo Cottarelli de formar um “governo neutro”. Na prática, será um executivo para fazer eleições no fim do Verão, talvez em Setembro, pois não disporá de maioria parlamentar.

A reacção de Matteo Salvini, líder da Liga, foi virulenta, acusando Mattarella de se submeter às pressões europeias e dos mercados. Começou uma imediata mobilização em torno da soberania nacional, jurando que Itália jamais aceitará ser “serva” e inclinar-se perante os diktats de “Berlim, Bruxelas ou Paris”.

Luigi Di Maio, “chefe político” do M5S, propôs a abertura de um processo de destituição (impeachment) do Presidente por “traição constitucional”.

O M5S apelou à “ocupação das ruas” de Roma no sábado e pediu que os cidadãos colocassem nas janelas a bandeira nacional. O Partido Democrático (PD) respondeu anunciando uma manifestação nacional, também em Roma, na sexta-feira.

O pretexto Savona

Savona é um economista prestigiado. Não defende a saída da Itália do euro mas considera que o problema tem ser posto, propondo um “plano B” — e não um bluff — em caso de não ser possível uma revisão dos tratados europeus. O “plano B” alarmou o Presidente, que pediu a escolha de outro nome, que provocasse menos reacções. Savona foi imposto por Salvini. Mattarella, que tem competência constitucional para recusar ministros, respondeu não aceitar “ultimatos”. Começou um “braço-de-ferro” que acabou na ruptura de domingo.

Mattarella é olhado como o garante da Constituição e das instituições perante os riscos de deriva do M5S e, sobretudo, da Liga. Se muitos observadores o aprovam, outros consideram que cometeu um erro, caindo numa armadilha. “Com uma escolha e um discurso tão honestos como perigosos, deu de facto à Liga e ao Cinco Estrelas todos os argumentos possíveis para a próxima campanha eleitoral”, escreve Francesco Cancellato, no Linkiesta. Conclui: “Di Maio e Salvini já venceram.”

No Il Fatto Quotidiano, anota Stefano Feltri: “A matriz da crise institucional que agora sacode a Itália é puramente política. Táctica. Matteo Salvini conseguiu com um só golpe construir um bipolarismo em torno da sua pessoa e da Liga. (...) Di Maio é atacado pela sua propensão ao compromisso com a Liga ou pelos que o acusam de irresponsabilidade ao acusar o chefe de Estado.” Salvini coloca explosivos na crise mas não pede a demissão de Mattarella e defende Mario Draghi, também atacado pelo M5S.

A Liga apresenta-se como “vítima” e com argumentos para proclamar que a Itália é “um país de soberania limitada” de modo a precipitar o seu eleitorado numa “batalha de vida ou morte”.

Percebe-se agora que Salvini, em alta nas sondagens, sempre desejou precipitar eleições. Se o M5S e a Liga concorressem juntos poderiam ter, com base nos dados actuais, dois terços da Câmara dos Deputados e do Senado. Mas não o farão porque tanto a sua identidade como os seus objectivos são muito diversos. É de admitir um choque entre os “dois populismos”. Tal como é de admitir que Salvini preserve tacticamente a aliança com Berlusconi porque precisaria dos seus votos para ultrapassar a barreira dos 40% e conquistar de vez a liderança do centro-direita.

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Percebe-se agora que Salvini, em alta nas sondagens, quis sempre precipitar eleições GIUSEPPE LAMI/EPA

“Campanha infernal”

E a oposição? Com o PD partido ao meio, perdeu a capacidade de iniciativa. É possível que um clima de intensa polarização a faça reagir. Foi o que ontem disse Matteo Renzi, ex-líder dos democratas. “As eleições estão próximas. Será uma batalha incrível entre os que querem sair da Europa e os que querem uma Itália forte mas dentro da Europa. (...) Deve começar hoje o envolvimento de tantas pessoas que vêem o risco de que a saída da casa comum destrua o futuro dos nossos filhos. Casa a casa, porta a porta, praça a praça.”

Mas onde está um líder capaz de mobilizar o centro-esquerda?

“Espera-se uma campanha eleitoral infernal”, declara o analista Antonio Fanna ao Il Sussidiario. Nas últimas campanhas, o alvo foi Renzi. “Desta vez o alvo será Mattarella.”

E, no centro de tudo, estará o euro. A extrema-direita de Salvini tira partido da maré eurocéptica, que permite designar a Europa como a raiz de todas as “doenças” e “vícios” da Itália.

As capitais europeias percebem mal esta dinâmica e algumas saudaram com alívio a nomeação de Cotarelli. Muitos jornais europeus insultam a Itália sem perceber que servem Salvini. A crise italiana é simplesmente mais um passo na crescente corrosão da Europa a partir de dentro.

A crise espanhola é muito distinta e nada tem a ver como eurocepticismo. Mas a paralisia de Roma e Madrid bloqueia todos os debates sobre a reforma da UE.

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