“Quem virá para aqui com uma mina de urânio ao pé?”

Intervenção do Governo português junto do espanhol é a última esperança dos ambientalistas para travar uma exploração de urânio a céu aberto a cerca de 40 quilómetros da fronteira. Há quem apelide Retortillo de “Almaraz II”.

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, Matias Mayordomo diz que os deputados portugueses são a última esperança dos ambientalista contra a instalação da mina em Retortillo, Matias Mayordomo diz que os deputados portugueses são a última esperança dos ambientalista contra a instalação da mina em Retortillo
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A espanhola Jenara Moro Tapia, de 51 anos e de pin ao peito – "Stop Urânio" a letras garrafais –, transmite nas redes sociais todos os vídeos de protesto que consegue fazer.  Anda a ver se os portugueses impedem uma empresa de explorar uma mina de urânio a céu aberto em Retortillo. Nasceu, vive e trabalha numa outra vila próxima. Se a exploração se concretizar, diz, vão-se as termas que a sustentam, vai-se o gado e a terra fértil, o ganha-pão da família. Do lado de cá da fronteira, em Almeida, a escassos 40 quilómetros, a mina é um um segredo bem guardado. Os habitantes de Almeida nunca ouviram falar do projecto de extracção de urânio responsável pelo tremor da voz de um autarca da raia portuguesa que falou ao deputado Pedro Soares.

“Já perdemos a Caixa Geral de Depósitos, já perdemos os Correios, já perdemos tanta coisa, não deixem que percamos também a saúde”, recorda o bloquista citando as palavras do autarca que preferiu não identificar. Apesar de incógnito deixou sem palavras o apelo com que muitos se identificaram nesta segunda-feira, dia em que o deputado e os colegas portugueses da comissão parlamentar de Ambiente foram à vila espanhola procurar informações que, até agora, o país vizinho não tinha prestado a Portugal sobre a construção de uma possível mina a pouca distância da fronteira.

Os deputados portugueses são a esperança de quem anda há quase uma década a tentar travar a construção do complexo mineiro Retortillo – Santidad da Berkeley Minera España S.L, empresa australiana a quem o Governo espanhol deu autorização de exploração em 2014. Di-lo Matias Mayordomo, ambientalista e um dos fundadores do movimento Stop Urânio, entre palavras de raiva que interrompem a voz calma com que descreve Retortillo, “uma terra que fora maravilhosa de tanta diversidade de fauna e flora que tinha”. Comum na região oeste de Salamanca, a pecuária e agricultura são a base da economia. O turismo rural e termal, uma potencialidade. “Mas como em nenhum outro país desenvolvido, aqui consente-se uma mina destas a céu aberto”, atira.

Nunca a questão será linear. De um lado uma empresa que promete investir 75 milhões de euros num primeiro momento – e chegar ao 250 milhões a longo prazo –, criar 450 postos de trabalho directos, 2000 indirectos, e uma exploração que deve laborar até dez anos. Depois disso, promete compensar pelos cerca de 20 mil carvalhos (contas do movimento ambientalista) que cortou com a plantação de outros 30 mil e reabilitar os terrenos.

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Do outro lado, está quem dificilmente veja um plano “tão limpo”. Para os ambientalistas – com os grupos Stop Urânio e Movimento Ibérico Antinuclear à cabeça, apoiados pelos alcaides de Boada (terra de Jenara) e Villavieja de Yeltes (de onde Matias é natural) – estão em causa 1200 agricultores e criadores de gado, entre 60 a 70 postos de trabalho nas termas de Retortillo, e várias vilas afectadas pelo que dizem ser um “autêntico atentado ambiental”. Descrevem: as poeiras radioactivas libertadas ao longo de todo o processo – desde a explosão para a abertura das fendas de exploração, ao transporte, à lixiviação dos sedimentos e armazenamento – contaminam ar e água. Isto num local que integra a rede europeia Natura 2000, que designa áreas de conservação de habitats ameaçados ou vulneráveis, e uma zona de especial protecção de aves. A escola está a poucos metros. As termas, classificadas como lugar de interesse comunitário, a outros tantos.

“Quem virá para aqui com uma mina de urânio ao pé? E depois de eles destruírem tudo: o que nos resta?” Jenara tem mais perguntas do que respostas.

Portugal não foi consultado

Não é comum os deputados trocarem a Assembleia da República por uma “visita de campo”, mas a situação exigia estas voltas. “Portugal já tinha pedido informação a Espanha e as respostas foram nulas. Tivemos que vir à procura. E tudo o que ouvimos reforçou as nossas preocupações”, sublinhava Pedro Soares ao início da tarde desta segunda-feira. Já tinha ouvido autarcas portugueses, reunidos na véspera em Almeida, alcaides e ambientalistas de ambos os países.

Pouco depois havia de chegar resposta do Governo: afinal Espanha já respondera e dizia estar “muito longe” de concluir ou garantir o licenciamento da mina. A carta que o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares enviou ao presidente da comissão, a que a Lusa teve acesso, faz saber que o projecto está suspenso, à espera que o Conselho de Segurança Nuclear conceda à empresa licença de utilização. Se tiver luz verde, a Berkeley conta começar a laborar no próximo ano. E faz notar que os vários contactos e troca de informações entre os dois países, desde 2016, culminaram no início deste mês (dia 8) com um encontro em Madrid entre o director-geral dos Assuntos Europeus português e os responsáveis do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha. Aí os espanhóis firmaram o compromisso de “facultar toda a informação adicional que Portugal solicite ou que surja pelo lado espanhol" quanto a este processo.

Não há fronteiras para a radioactividade 

Mas dado que o Rio Yeltes, afluente do Huelva, desagua no Douro, “é falso que a contaminação seja localizada – como se a radioactividade alguma vez olhasse a fronteiras”, ironiza António Eloy, do Movimento Ibérico Antinuclear. Di-lo para deitar por terra o argumento das autoridades espanholas de que a distância do projecto à fronteira portuguesa justifica que Portugal não seja consultado para qualquer estudo de impacto ambiental feito sobre a mina.

De facto, nunca o país foi ouvido sobre esta matéria. Mesmo tendo a Agência Portuguesa do Ambiente reconhecido, em 2016, que a exploração Retortillo – Santidad pode ser “susceptível de ter efeitos ambientais significativos em Portugal”. Para o ambientalista, a postura espanhola viola não só os acordos de cooperação entre os dois países como as directivas europeias.

“Torna-se difícil não fazer comparações com [a construção de um armazém de resíduos nucleares em] Almaraz e esperamos que não se repitam os mesmos erros”, sublinha Maria da Luz Rosinha, vice-presidente da comissão parlamentar e deputada do PS. A comparação é constante – há quem apelide Retortillo de “Almaraz II”. Aí Portugal reagiu tarde demais, diz o colega do BE, ao fazer uma participação à Comissão Europeia. “Desta vez, garantidamente, o ministro do Ambiente e dos Negócios Estrangeiros vão-se envolver. O interior não ficará ao abandono”, assegura a socialista.

A comissão ainda não reuniu depois desta visita, mas os seus representantes dizem que há um consenso: vão recomendar ao Governo que exija transparência a Espanha.

“Não me podia preocupar porque não sabia nada disso”

Pedro Soares diz ter encontrado em Almeida “uma sala cheia de autarcas preocupados”. Mas na vila do distrito da Guarda, ninguém parece saber de nada. Na mercearia de ambos, João e Odete Alberto, de 68 e 67 anos, lembram-se das antigas explorações de volfrâmio onde os avós trabalhavam junto ao Rio Côa, mas de Retortillo não ouviram sequer falar.

“Não me podia preocupar porque não sabia de nada disso”. A voz de Josefina Albano, de 82 anos, acorda a rua adormecida da vila emuralhada. E sobressalta-se: “Não venham para cá, que isso é uma coisa que não faz bem a ninguém.”

Francisco Bellón, director-geral da Berkeley, quis contrariar as críticas e o ambiente de protesto que decorria de manhã à porta da empresa e receber a comitiva portuguesa. Diz que a superfície aberta da exploração será mínima e, não havendo descarga de águas industriais para o rio, a população não tem porque se preocupar com a contaminação. E acrescenta: “A planta é em tudo semelhante à Mina Fé, localizada em Saelices el Chico [explorada pela Empresa Nacional de Urânio entre 1974 a 2000] nunca teve nenhum problema.”

“Dividiram-nos”

Cada um dos 60 municípios do oeste salamantino onde a Berkeley obteve 44 licenças de investigação de urânio tem entre 200 a 300 habitantes. Alguns fazem fronteira com Portugal e justificam o aviso de José Ramón Barrueco, porta-voz do Stop Urânio: “Se se concretizar esta mina, a empresa vai querer o filão todo e muito mais minas e cemitérios de urânio virão.”

“O que mais me custa é que nos tiraram a socialização. Dividiram-nos”, retorque Matias Mayordomo, que com o colega ornitólogo Henrique “Kike” Moro percorrem diariamente, por caminhos públicos, os terrenos comprados pela empresa. “Aqui somos só nós a vigiar, a denunciar”. Falam dos incumprimentos reportados à Junta de Castilla Y León, arquivados. Dos antigos terrenos de carvalhos – “alguns milenares” – agora despidos, que terão “rendido à empresa mais de 1,5 milhões”. Falam das famílias de costas viradas por causa da venda de terrenos, por causa da promessa de empregos. Dos amigos pressionados para venderem. Da manifestação deste sábado em Salamanca.

“Já ninguém investe aqui. Era um bosque mediterrâneo maravilhoso e olhe agora: Perigo, materiais perigosos”, lê numa placa à beira da estrada. Agora vê os vizinhos retirarem os cartazes que afixaram: “Não à mina, sim à vida”.

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