Francis Kéré: “Em África, não temos ainda lobbies que permitam realizar coisas boas”

O arquitecto do Burkina Faso participou no Fórum do Futuro com o testemunho de um trabalho muito marcado por preocupações sociais e pela atenção às necessidades da sua África natal. É o autor do pavilhão deste ano da galeria Serpentine, em Londres. E um admirador confesso de Siza e Souto de Moura.

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Francis Kéré no Teatro Rivoli Adriano Miranda
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Francis Kéré no Teatro Rivoli Adriano Miranda
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Escola primária em Gando, Burkina Faso DR
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Serpentine Gallery, em Londres DR

Foi um Teatro Rivoli cheio e a transbordar mesmo para o pequeno auditório, onde a sessão pôde também ser seguida via streaming, que quarta-feira à noite acolheu Francis Kéré, em mais uma sessão do Fórum do Futuro. O arquitecto nascido no Burkina Faso (Gando, 1965), com formação e escritório em Berlim, explicou como, na arquitectura que defende e que tem vindo a praticar um pouco por todo o mundo – mas com uma atenção especial e afectiva à sua terra natal –, é possível fazer “mais com menos”.

Apresentado no Porto pelo arquitecto Paulo Moreira como “uma das figuras mais representativas da diáspora africana” no seu domínio, Francis Kéré foi o convidado, este ano, para desenhar o pavilhão da Serpentine Gallery, em Londres. Este foi um dos projectos que explicou no Rivoli, numa “aula” em que percorreu a sua carreira, desde a escola primária que projectou e ajudou a construir na sua aldeia natal, Gando, até ao novo edifício para a Assembleia Nacional na capital Ouagadougou, que imaginou também como um parque memorial e educativo.

“Ser fiel ao desenho e evitar os meandros da política” – foi a mensagem que Francis Kéré deixou para a plateia, na maioria constituída por jovens estudantes de arquitectura. Antes da sessão, o arquitecto falou com o PÚBLICO.

O tema da sua intervenção no fórum, “mais com menos”, identifica o seu trabalho como particularmente marcado por preocupações sociais.
Sim. Eu sirvo-me da arquitectura para servir uma causa, mas não gosto que me colem apenas a isso, só com essa etiqueta. Evidentemente, utilizo os meios da arquitectura para servir uma causa social. Mas isso não quer dizer que eu seja o “puro, puro social”. Até porque temos de fazer outras coisas que nos permitam financiar os projectos sociais. Na nossa profissão, tudo depende de tudo. E é preciso conjugar muitos esforços para chegarmos a um projecto com o qual nos sintamos identificados.

Começou por fazer uma escola na sua terra natal, Gando. Como é que esse projecto surgiu, e que importância teve no seu percurso?
Foi por mero acaso que se tratou de um projecto de arquitectura. Eu tinha saído da minha comunidade no Burkina [Faso]. Fui para a Alemanha estudar. Surgiu então a ideia de se construir uma escola na minha terra. Nessa altura, não pensei em nada de arquitectura. Simplesmente, senti que era meu dever ajudar a minha comunidade. E recorri à arquitectura. Quando concebi esse projecto, em 2001, era ainda estudante – o meu diploma, consegui-o apenas quatro anos mais tarde –, e foi então que vários amigos, e professores, em Berlim, me disseram: “Ouve. Estás em posição de poder mudar um pouco o mundo da arquitectura na tua terra, e talvez mesmo aqui na escola”. Na altura, não percebi o alcance disso. Era uma questão afectiva, de coração. É por isso que digo que o projecto da escola surgiu por acaso. Eu podia pura e simplesmente enviar dinheiro para a minha terra, para que a fizessem. Mas eu não tinha dinheiro. Teria de o pedir aos amigos. Então, disse: “Se tenho esta oportunidade de ajudar, vou mobilizar todos os meios e recursos locais, e também os recursos materiais disponíveis para criar essa escola”. Mas não era nada evidente que tivesse de ser assim.

Mas isso, de certo modo, marcou o seu caminho. Continuou a trabalhar sempre com uma ligação muito estreia com o seu país, entre o Burkina Faso, a Europa e o mundo, e sempre com uma grande atenção às causas sociais. Como é que consegue fazer este vaivém entre dois mundos?
Isso é, de algum modo, uma façanha. A Europa constitui um berço intelectual para mim. Foi nela que tive acesso à informação, ao saber-fazer. Por isso tenho vivido sempre neste vaivém entre o Burkina Faso e o Ocidente, Berlim em particular, onde estudei e onde criei mesmo uma rede profissional e intelectual. Mas, evidentemente, isso exige muita energia. Quer dizer, sair da Alemanha, onde tudo é racional e rígido, muito rígido, onde tudo é sempre muito documentado, e chegar a Ouagadougou [capital do Burkina Faso], onde tudo está ainda no início. É outro mundo, é outro tempo, outro mundo de relações humanas. Um mundo em que as mudanças profundas exigem muito tempo. Trata-se de um diálogo. Primeiro, comigo próprio; depois, vivendo na Alemanha, tenho de mobilizar as pessoas [na minha terra] para elas fazerem as coisas de outra maneira. Não se podia simplesmente copiar aquilo que se faz no Ocidente. Os projectos que encontro na Alemanha não podem ser transplantados para o Burkina Faso. É preciso adaptá-los. Por isso, estou sempre em viagem, física e mental, entre os dois mundos.

É uma viagem que faz facilmente?
Nem sempre. Exige muita energia, é muitas vezes cansativo, mas traz sempre uma grande recompensa, que é ver aplicado em projectos concretos aquilo que tinhas imaginado. E há também o entusiasmo que nasce do facto de se fazer projectos em conjunto, de nos sentirmos identificados, de eles verem que são também os seus projectos. Isso liberta energia. Se não fosse assim, tornar-se-ia apenas cansativo. Mas eu continuo a viajar muito, porque é a riqueza desta troca que também alimenta o esforço humano.

Por que foi estudar para a Alemanha?
É simples: recebi uma bolsa. Poderia ter sido para Portugal, ou então para a França. Mas tratou-se de uma bolsa do Governo alemão no âmbito de um programa de cooperação, e que me permitiu ir para Berlim. Foi só isso.

Como vê a situação actual da arquitectura de África? Quem tem marcado a história da arquitectura tem sido o Norte, entre a Europa e a América, mas ultimamente começa a verificar-se a existência de alguma atenção aos arquitectos do Sul, reflectida, por exemplo, na atribuição, no ano passado, do prémio Pritzker ao chileno Alejandro Aravena.
Essa é uma questão importante. Creio que o facto de haver agora um olhar mais atento sobre a arquitectura que vem do Sul se deve a aí haver uma procura enorme. Em África, mesmo com poucos recursos, podemos inventar estruturas que são sempre úteis. Convém lembrar que o objectivo e a razão primeira da arquitectura é servir; é estar ao serviço da humanidade. No Ocidente, digamos que havia uma saturação: já se construiu tudo, por isso, as pessoas batem-se agora por construir museus extraordinários, com materiais sofisticados, tudo muito caro. Enquanto, do outro lado, vivemos ainda em estado de pura necessidade. Necessidade de casas modestas, e de infra-estruturas simples que permitam, por exemplo, ensinar as crianças. É por isso que o caminho é agora também olhar para o Sul, onde há uma necessidade enorme, e que é todo um novo campo de possibilidades.

Vê algum paralelismo entre o seu trabalho nos vários países de África e o de Aravena? Por exemplo, no modo como ele se mostra atento às questões e às necessidades de habitação na América do Sul?
Há alguns anos, participámos ambos numa grande exposição no MoMA [Museu de Arte Moderna, Nova Iorque], que se chamou Small Scale, Big Change: New architectures of social engagement; 2010/11]. Entretanto, o Aravena tornou-se prémio Pritzker. Falar sobre ele, agora, é um pouco delicado. Mas é verdade que trabalhamos ambos em regiões onde há uma grande procura, uma grande necessidade de infra-estruturas e também de habitação. A única diferença – e é preciso reconhecê-lo – é que ele tem por trás uma estrutura forte que lhe permitiu fazer um trabalho mais visível. Em África, não temos ainda lobbies que permitam realizar coisas boas. Aravena tem o Estado, tem uma companhia petrolífera – se recordo bem – que lhe permitiu concretizar ideias fantásticas. De resto, pergunto-me sempre: “Por que é que não descobri isto?” Alejandro Aravena é um grande arquitecto, que conheço bem e admiro; um colega que se tornou grande. Mas devo dizer que a diferença está nos meios. Por trás do trabalho dele, há uma vontade política do Governo, e capitais que lhe permitiram concretizá-lo.

Será por essa situação que não há ainda nenhum prémio Pritzker em África?
Não direi isso. É bom saber que alguém como o Aravena pôde ser considerado para o Pritzker. Isso valoriza todos os esforços que vêm sendo feitos para servir as populações do Sul, que continuam a ter necessidade de boas infra-estruturas. É tudo. O resto, veremos…

O Pritzker não está no seu horizonte? Não seria já tempo de distinguir a arquitectura que se faz em África?
O meu trabalho nasceu da vontade de servir a minha própria comunidade. E continuamos a trabalhar nesse sentido. Está a correr bem. O prémio de que fala é de tal modo honroso que não creio que esteja no meu horizonte. Mas acredito que, um dia, se África continuar a fazer este esforço… Veremos. Mas esse não é o leitmotiv do meu trabalho.

Em que é que consiste, e em que ponto está o projecto da Casa da Ópera em construção em Laongo, no seu país?
O projecto nasceu da visão de um artista alemão, Christoph Schlingensief [1960-2010], de quem me tornei um grande amigo, que na altura do seu lançamento já estava doente com um cancro grave, e que infelizmente já partiu. Este artista tinha uma visão incrível: criar uma aldeia em volta de uma casa de ópera. Ele era um grande admirador do Joseph Beuys [1921-1986], o artista plástico social, e quando descobriu o meu trabalho, disse-me: “Ouve Francis, o que tu fazes é exactamente o que o Beuys defendia. É preciso mobilizar uma comunidade para ela construir, em conjunto, a sua aldeia, o seu lugar para viver”. Ele apaixonou-se por esse projecto, e perguntou-me se eu podia colaborar com ele para construção, primeiro, de uma ópera. A seguir, chamámos-lhe Opera Village. Tratava-se de construir uma aldeia, passo a passo e de acordo com os meios disponíveis. Lançámos a construção, mas não estabelecemos nenhum calendário, e continuamos ainda hoje a fazer esse trabalho. Há lá muitos estudantes, há casas para artistas e mesmo um centro médico. O Christoph dizia que o que queria não era uma casa de ópera à europeia, mas um centro de intercâmbio cultural e artístico, e também político – era assim que ele lhe chamava –, onde mesmo o choro de um recém-nascido seria um espectáculo. É assim que temos uma maternidade onde os bebés nascem. Era esta a visão dele, de uma estrutura que nasce e cria oportunidades.

Mas a ópera, propriamente dita, ainda não foi construída.
Ainda não. Será construída se, entretanto, encontrarmos os meios. É esse o plano. A ópera será o coração da estrutura que virá completar o conjunto.

Mas já existe a escola, o centro médico, a maternidade…
Exactamente. É como uma espiral de ideias que continuam a crescer. Se entretanto surgir um grande sponser… Mas, como dizia atrás, em África o lobby para os bons projectos é ainda muito frágil, não sei porquê.

Como correu a sua experiência, este ano, com o pavilhão para a Serpentine Gallery, em Londres?
O pavilhão na Serpentine foi efectivamente uma bela experiência. Quando se trabalha no Ocidente, o acesso à informação e à visibilidade é evidente. Este é talvez o projecto mais forte que eu pude fazer até ao momento. E ter podido trabalhar com uma estrutura como a da Serpentine, poder colaborar com artistas como Hans Ulrich [Obrist, director artístico da galeria] e a sua equipa foi extraordinário. Tivemos a sorte de ter tido um grande sucesso. Foi por isso que eles decidiram este ano prolongar o pavilhão [até 19 de Novembro].

Tem números dos visitantes?
O Hans disse-me que ele “é já o pavilhão mais visitado de sempre!”. Estou muito feliz. E isso permitiu-me dizer que podemos ter uma aproximação a África, e sobretudo de encorajar os jovens que não tiveram as oportunidades que eu tive de ter acesso a uma comunidade que me permitiu trabalhar. Porque é preciso sonhar sempre, e sonhar em grande, ver os grandes mestres. Mesmo se não se trata de acreditar que vamos sonhar e acordar no dia seguinte tornando-nos como eles. Isso é impossível. Mas podemos começar de pequenos e ter a hipótese de um dia poder fazer aquilo que eu acabei por ter a oportunidade de fazer: mostrar a nossa capacidade e, ao mesmo tempo, mostrar que a nossa profissão é algo que se aprende. É verdade que há pessoas que têm mais talento, mas é preciso aprender. Talvez, um dia, eu possa vir também a poder projectar para esta cidade do Álvaro Siza e do Souto de Moura (risos).

Visitou já Portugal, e o Porto em particular. O que é que conhece da arquitectura portuguesa?
Siza e Souto de Moura, evidentemente. Enquanto estudante e arquitecto, eu teria de me cruzar necessariamente com as obras deles. Eu já dormi mesmo, durante uma semana, numa casa de habitação social projectada por Siza, no Bairro da Bouça. Nunca lho disse, mas habitei lá uma semana, justamente para me aproximar o mais possível da visão deste mestre. À parte o conhecimento do seu trabalho através dos livros, tive a oportunidade de o conhecer por dentro. É de uma riqueza enorme. Siza introduz-nos naquilo que é a arquitectura portuguesa, sem dúvida. Ele é de tal modo generoso – é incrível!

O que é que mais lhe interesse na chamada Escola do Porto?
Se bem compreendi, o que marca essa escola é a troca, a cooperação entre colegas. E isso é muito forte. Mostra-nos como sobreviver a esta crise que vivemos nas diferentes escolas; cria um elo muito forte, e isso parece a melhor forma de o fazer.

Dos edifícios de Siza que conhece, qual lhe agrada mais?
Gosto da arquitectura que nos toca, nos atrai, que nos prende desde o início e até ao fim. É isso que Siza e Souto de Moura fazem. Não posso dizer que tenha edifícios preferidos. No ano passado, fui visitar as piscinas e o restaurante [Casa de Chá da Boa Nova] em Matosinhos, e nem consigo sequer desenhá-los. Pergunto-me: “Como é que eles o conseguem fazer?”. Admiro-os. Cada projecto, pequeno ou grande, como é que eles conseguem chegar a obras como estas, num contexto em que a economia pressiona por todos os lados. Mas eles tiveram o génio de realizar as suas obras. É encorajante.

E um projecto como a Casa da Música, de Rem Koolhaas, é algo que lhe interessa também?
Sim. Primeiro que tudo, ver e perceber como é que o espaço foi trabalhado, foi modelado. É claro que quando se vive, ou se vem de um país como o Burkina Faso, percebe-se que isto só é possível num país rico…

Não será o caso de Portugal…
Digo rico em termos de sensibilidade e de engenharia, além das condições para o fazer. Na Casa da Música, o que me interessa, além do Rem [Koolhaas] e do seu projecto, é uma cidade que teve a visão de deixar fazê-lo. É preciso haver pessoas que criam estas possibilidades. Penso sempre no caso do Centro Pompidou, quando o Richard Rogers [co-autor do projecto com Renzo Piano] disse, um dia, que teve a sorte de ter estado errado, porque ele não queria que o projecto se concretizasse, mas, felizmente, não o levaram a sério…

Mas os chamados archi-stars estarão longe das suas preocupações e das suas prioridades na arquitectura. Um Frank Ghery, um Norman Foster, uma Zaha Hadid…
Se penso em Zaha Hadid [1950-2016], vejo primeiro que tudo uma mulher, ainda, por cima, em Inglaterra, que teve sucesso no domínio da arquitectura, e isso merece toda a minha admiração. É incrível como é que ela conseguiu criar o que criou, mais ainda sendo mulher! Enquanto arquitecto que conhece bem a disciplina, e como profissional que conhece a complexidade e os desafios que enfrenta quem se propõe a projectar e a criar obras como os que referiu, eu tiro-lhes o chapéu. Mas, claro, eu movo-me num mundo muito diferente, e luto com outros meios.

Mas tem actualmente projectos um pouco por todo o mundo, desde a China aos Estados Unidos…
Sim. Na China estou mais a aprender. O meu primeiro projecto lá foi a transformação de um porto, no arquipélago de Zhoushan, dirigido por Wang Shu [Prémio Pritzker em 2012]. Ele utiliza a mesma técnica e eu estava sobretudo interessado nisso. Nós compramos muitos produtos novos na China, e eu quis perceber o modo tradicional de eles trabalharem, e descobrir elementos que pudesse adaptar. Foi sobretudo por isso.

E nos Estados Unidos?
Temos actualmente um projecto, um centro de acolhimento de visitantes em Montana, no Tippet Rise Art Center. São clientes modestos, mas nobres, que me procuraram e à minha forma de trabalhar para criar um espaço que permita aos visitantes descansar. Mas estou também a trabalhar em Moçambique, desde há três anos, a fazer habitações e escolas, em Tete. E trabalho também no Quénia, no Uganda, no Mali, na Tunísia… E muito no Burkina Faso, que se mantém o centro da minha actividade.

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