Uma cavalgada com o seu quê de heróico

Comboio de Sal e Açúcar faz um flash-back ao final dos anos 80 e a um Moçambique moído por uma guerra civil interminável, usando como móbil uma viagem de comboio através de uma terra sem lei.

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Comboio de sal e açúcar: comentário político e estudo da natureza humana

Licínio Azevedo, brasileiro de nascimento mas radicado em Moçambique desde a independência (muito jovem, foi um dos alunos/colaboradores de Godard nas acções de formação que o franco-suíço, então no seu período politicamente mais intenso, foi fazer ao novo país), é hoje o nome mais expressivo, pelo menos em termos internacionais, do cinema moçambicano.

Comboio de Sal e Açúcar adapta um romance da sua própria autoria e faz um flash-back ao final dos anos 80 e a um país moído por uma guerra civil interminável, usando como móbil uma viagem de comboio (até à fronteira com o Malawi, onde os moçambicanos iam trocar sal pelo açúcar que escasseava no seu país) através de uma terra sem lei, infestada de rebeldes e bandos avulsos. Há algumas sequências de acção, simples mas imaginativas na forma como contornam a falta de meios para dar o “espectáculo da guerra”, e suficientemente inteligentes para sublinharem o que aproxima o filme, em termos de “género”, de uma lógica de western.

Aliás, tomado no seu esqueleto, o estratagema narrativo parece uma deriva do célebre Stagecoach de John Ford (Cavalgada Heróica, em Portugal): um veículo que avança por terras ásperas mas onde o essencial está no relacionamento dos passageiros e das escoltas, e na maneira como as circunstâncias extremas revelam o carácter e as histórias pessoais dos envolvidos.

Na teia de relações entre as várias personagens (sobretudo os militares que escoltam o comboio) existe tanto de comentário político como de estudo da natureza humana. Há um inimigo “interno”: o mau carácter de alguns dos militares, a sua prepotência (“este comboio é nosso”) e os seus abusos (nomeadamente das mulheres), e isto é uma forma relativamente subtil de comentar criticamente o comportamento do exército – e portanto, da Frelimo – durante a guerra. Ao mesmo tempo, é um filme sonhador e melancólico, sempre a apontar para os “intervalos” (os passeios pela mata, os banhos no lago, a relação entre o militar mais “positivo”, o óptimo Matamba Joaquim, e a miúda passageira) e, através dos relatos das personagens, para um tempo “sem guerra”, passado ou futuro. Aspecto que Licínio Azevedo reforça pela atenção “sensual” à paisagem, às cores, à luz da terra africana. É um filme discreto, certamente, mas as suas inteligência e subtileza merecem que se lhe dê alguma atenção.

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