Estou? É da sala do segredo? Queria saber como se fazem os pastéis de Belém

Por trás de um dos doces mais famosos de Portugal está uma confeitaria familiar que há quatro gerações preserva um segredo com 180 anos. A autenticidade e a qualidade são os ingredientes principais de uma receita que se recusam a partilhar ou a internacionalizar.

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Miguel Manso
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À porta dos Pastéis de Belém, a fila pode desanimar quem quer experimentar os famosos doces que se vendem, acabados de sair do forno, naquela confeitaria e fábrica centenária que ganhou fama mundial. Contudo, nem os 35 graus que se fazem sentir desmobilizam os turistas e os poucos portugueses que esperam alcançar o balcão para comprar uma caixinha rectangular com meia dúzia de pastéis. Lá dentro, na zona das mesas, há um vaivém constante de empregados que levam pratinhos com bolos às mesas ocupadas por famílias inteiras, casais e grupos. Há um aroma característico, que não deixa ninguém indiferente.

Por detrás desta azáfama está uma confeitaria que há 180 anos reproduz a receita dos pastéis confeccionados no século XIX pelos monges do Mosteiro dos Jerónimos e que, desde então, tem sido preservada e guardada a sete chaves.

Depois de ter mudado de dono várias vezes, a fábrica dos Pastéis de Belém está desde o início do século XX nas mãos da família Clarinha. Miguel Clarinha, um dos três gerentes, encaminha-nos por um labirinto de salas forradas de azulejos azuis e brancos, até chegarmos a um dos mais recentes espaços da confeitaria. Há nove anos que, juntamente com uma prima, tomou conta da empresa.

Todos os dias gere 180 trabalhadores que se repartem entre o atendimento ao público, a copa e a fábrica propriamente dita de onde saem 20 mil pastéis diários – em Agosto são 40 mil e no dia em que o Dakar partiu de Lisboa atingiu-se um recorde de 52 mil. São vendidos na confeitaria que há quase dois séculos ocupa os números 84 a 92 da Rua de Belém, no local onde existiu uma refinaria de cana-de-açúcar e um pequeno comércio.

Mas o que explica que uma “simples” confeitaria se mantenha em actividade há quase dois séculos produzindo pastéis de massa folhada com creme no interior? “Não há propriamente um segredo. É a qualidade, o facto de ser uma receita única e de produção artesanal”, responde o jovem gerente.

A qualidade é, de resto uma das razões que tem impedido que a empresa opte por uma expansão internacional que poderia revelar-se lucrativa. “Por mais voltas que demos, para apostarmos na expansão e na internacionalização, teríamos sempre de sacrificar a qualidade do produto através da congelação, o que para nós está completamente fora de questão; ou montar outra unidade de produção e perder o factor que os pastéis têm de especial que é o facto de este ser o único local do mundo em que se podem encontrar, com toda a história que têm”, frisa, assumindo que esta postura “mais conservadora” se tem revelado “a escolha acertada”.

O secretismo à volta da receita é um dos ingredientes que contribui para a fama dos pastéis de Belém. Aquilo que começou por ser uma preocupação de preservar a receita original e o negócio, acabou por funcionar como uma ferramenta de marketing que ajudou a transformar a confeitaria num fenómeno global.

Apenas seis pessoas conhecem a receita: os gerentes da empresa e os três mestres pasteleiros, que todos os dias preparam a massa e o creme na “sala do segredo”. Para garantir que ela não sai deste grupo restrito, os mestres assinam um contrato de sigilo profissional e são escolhidos entre os funcionários mais antigos. “Acaba por ser mais importante que seja uma pessoa de confiança e a sua postura na empresa, do que ser um pasteleiro experimentado”, explica Miguel Clarinha. “O fabrico dos pastéis é um processo complicado, mas que se aprende”, acrescenta.

A receita propriamente dita está guardada num cofre e mesmo que alguém a descobrisse “não conseguiria atingir o resultado final”. “Não são só os ingredientes, é a forma como se misturam, os tempos… tudo isso é fundamental para chegarmos ao pastel de Belém e não a qualquer outra coisa”.

Espionagem ou excesso de pormenor?

Com tanto mistério à volta de uma receita, seria natural que a empresa já tivesse sido alvo de espionagem industrial. Mas, na verdade, não há registo de nenhum caso particularmente preocupante. O mais próximo disso foi contado a Miguel pelo pai, quando uma televisão asiática veio à fábrica fazer uma reportagem e pedia pormenores como o diâmetro das formas. “Parecia um excesso de detalhe para uma reportagem televisiva”, diz entre uma gargalhada.

Enquanto visitamos a fábrica – claro que a "sala do segredo" mantém a porta fechada – Miguel Clarinha vai explicando o processo de fabrico que, garante, se mantém igual ao do passado. A massa vem da “sala do segredo” em rolos, depois é esticada e cortada em pedaços que são moldados às formas pelas mãos experientes de mulheres como a D. Madalena, que há 40 anos trabalha na fábrica. Em seguida, passa-se para outra sala, onde as formas são enchidas com o creme. – e esta é a única parte do processo que é mecanizada. Finalmente, vão ao forno por 20 minutos a uma temperatura que ronda os 400 graus. Após um tempo de repouso, são retirados das formas, casados dois a dois, e seguem para o serviço de mesa e para o balcão.

A base dos pastéis são, como explica o gerente, ingredientes naturais “muito simples”. “Não há conservantes, por isso é que este é um produto tão perecível”.

Numa altura em que a alimentação saudável ganha terreno nas escolhas dos consumidores, não há qualquer tentação de alterar a receita. “A única coisa que temos pena de não conseguirmos fazer é pastéis sem glúten. Mas nunca seria a receita original”, concede o gerente.

Uma empresa familiar a crescer com o turismo

Com quase duas centenas de trabalhadores, a empresa mantém um carácter familiar - há avós e netos a trabalhar lado a lado, trabalhadores que aqui se apaixonaram e casaram. O quadro de pessoal mantém-se estável, com trabalhadores que tiveram como único trabalho este onde agora estão.

É o caso de Vítor Rebelo, 52 anos, que trabalha nos Pastéis de Belém desde os 15. “Comecei por trabalhar na copa (loiça, servir bebidas), fui sendo promovido, percorri vários sectores, neste momento sou supervisor da empresa há 27 anos”, conta. O caso mais caricato aconteceu-lhe há uns anos com um turista brasileiro que ao dar uma dentada num pastel não se conteve: “Eu morro! Isso é tão bom!”.

Os turistas têm, de resto, assegurado que os Pastéis de Belém mantêm taxas de crescimento assinaláveis. Nos anos da crise, foi o desenvolvimento do sector turístico que permitiu equilibrar os pratos da balança e compensar a perda de clientes portugueses, que deixaram praticamente de aparecer ao final do dia e aos fins-de-semana. Agora, como explica Miguel Clarinha, os turistas “representam 40 a 45%, em algumas alturas 50%" dos clientes.

É também devido ao turismo que este ano a empresa conta ter um crescimento de 4% ou 5%, “algo impensável há seis ou sete anos”. Tudo isto sem grande investimento em campanhas promocionais, com excepção da presença em guias turísticos seleccionados. 

O aumento da procura constitui, de resto, um dos desafios da empresa. “O nosso foco é melhorar o serviço que prestamos e temos muita margem para melhorar as nossas salas. Queremos instalar ar condicionado, minimizar as filas e o atendimento”, resume Miguel Clarinha.

 

Quatro perguntas a Miguel Clarinha, gerente

 

Qual o segredo da longevidade da empresa?
Não há propriamente um segredo. É a qualidade, o facto de ser uma receita única, que se tem mantido, e a produção artesanal. E são também as pessoas que têm preservado essa identidade ao longo de 180 anos e que têm feito a empresa crescer de forma sustentada, sem nunca perder de vista o mais importante que são as suas raízes e a qualidade do produto.

Pode identificar a situação mais dramática na história da empresa?
Provavelmente, há 30 anos as coisas não estavam tão bem como estão hoje e as instalações da empresa não estavam preparadas para o crescimento que queríamos ter. Um dos principais desafios foi ultrapassar as barreiras que o próprio espaço criava, por serem instalações e prédios muito antigos, e conseguir fazer crescer o espaço e respeitar as regras. Um dos desafios mais difíceis foi fazer a transição de uma confeitaria já conhecida, mas ainda muito de Lisboa e de quem visitava Belém, para uma confeitaria global como é hoje.

Qual o episódio que destaca pela positiva?
Apesar das várias distinções que temos recebido, não é sinceramente o mais importante. Não consigo apontar um episódio determinante para o sucesso da empresa, mas acho que temos tido muita sorte com as pessoas que têm trabalhado connosco e com o local onde que estamos.

Que decisão política mais influência teve na empresa?
O aumento do IVA para 23% no sector da restauração foi fatal para muitas empresas. É um valor que não faz sentido ser cobrado neste país. Felizmente conseguimos passar por isso e acabámos por actualizar o preço do pastel nessa altura, algo que não fazíamos há quatro ou cinco anos. Passou de 95 cêntimos para 1,05 euros em 2012. Em 2016 aumentámos para 1,10 euros, na mesma altura em que aumentámos o salário dos colaboradores, também influenciados pela subida do salário mínimo. 

Números

Fundação: 1837

Trabalhadores: 157

Volume de Negócios: 9,3 milhões de euros

(Dados de 2015 fornecidos ao PÚBLICO pela consultora Informa DB)

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