“Mãe, quantas pessoas más há no mundo?”

Invejo algumas perguntas dos miúdos. Os adultos só não as fazem porque nos convencemos de que sabemos, mas não sabemos nada.

As pessoas atravessavam a rua e ela estava a vê-las, dentro do carro. Estava a olhar para aquela cena como se estivesse a ver o mundo pela primeira vez, conta a mãe. No meio daquele momento, parado mas em movimento, a miúda pergunta: “Porque é que há tantas pessoas que não me conhecem?” Nunca mais me esqueci da pergunta desta menina de cinco anos e que foi contada pela mãe, Kelly O'Brien, num artigo no New York Times. Não sei o que lhe respondeu a mãe, mas a interrogação está carregada de ternura e solidão, é impossível resistir.

O mais provável é que a menina estivesse em Toronto, mas, na história que podia criar a partir daquela pergunta, ela poderia estar em qualquer cidade gigante a ver pessoas, como formigas, a atravessar passadeiras ao fim do dia. Estaria sempre um tempo cinzento, um céu carregado, uma angústia de fim de tarde, de repetição. Ninguém se conhece, embora toda a gente respire dentro do mesmo espaço.

A criança que inventei estaria em Tóquio, por exemplo, a cabeça encostada ao vidro, pessoas como formigas, e de repente ela percebe, não com sobressalto, mas com melancolia, que não é o centro do mundo. Na interrogação dela, ainda há uma esperança de que ela possa continuar a ser esse centro, mas já há uma solidão que os adultos conhecem. Em Hong Kong, eu só pensava nisso quando olhava para tantos e tantos prédios. O táxi a levar-me para o aeroporto à noite e eu a olhar para prédios e prédios e prédios e janelas minúsculas e mais janelas minúsculas iluminadas, e a minha cabeça a encher-se de tantas possibilidades de histórias minúsculas, se pudesse espreitava-as todas. Às janelas e às pessoas.

A pergunta desta catraia está cheia de melancolias: ela percebe afinal que não é o centro do mundo. Que o mundo é enorme, que há tanta gente, que nós nunca vamos conhecer tanto mundo, nem tanta gente. Mas custa-lhe deixar o castelo, a pergunta ainda lhe sai ao contrário: “Porque é que há tanta gente que não me conhece?” Ela cheia de melancolias e eu cheia de ternuras com as melancolias pequeninas dela. Ela é pequenina, mas o essencial da pergunta é que somos todos muito mais pequeninos do que isso. Invejo algumas perguntas dos miúdos. Os adultos só não as fazem porque nos convencemos de que sabemos, mas não sabemos nada.

A Taís, a filha de quatro anos de uma colega, fez-lhe esta pergunta: “Mãe, quantas pessoas más há no mundo?” A mãe contou o momento no Facebook e as respostas apareceram. Há os optimistas, os pessimistas. Há os no meio, para quem não há conceitos absolutos de bondade ou maldade. Os que defendem que há gente boa a fazer coisas más, gente má a fazer coisas boas, há teorias para todas as circunstâncias. Eu também fui lá partilhar a minha opinião, o Facebook serve os adultos, serve para não sabermos nada e termos opinião sobre tudo. A verdade é que não faço a mínima ideia de quantas pessoas más há no mundo, nem sei definir uma pessoa má. Sabemos todos dar alguns exemplos, mas isso não chega para uma resposta. Tolstoi escrevia que não é possível ser-se bom pela metade. Não sei. Se calhar ninguém é só bom ou mau, somos muito melhores e piores do que isso.

Se a minha filha, ou filho, um dia me perguntar isso, vou obviamente fugir da resposta. Não me parece possível preparar alguém para a maldade, para as dores, para os desgostos, para as decepções. Mas vou levá-la, a ela ou a ele, para um passeio, mostrar-lhe o mundo, só a nossa rua é tão grande, já viste?, tanta gente, isto tem de estar cheio de muitas coisas. What a wonderful world foi um dos últimos singles que Louis Armstrong gravou. Faltavam quatro anos para morrer, mas a vida ainda era uma coisa do caraças. É sempre, filha. Quanto ao resto, o resto não sei, filho.

Esta Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

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