Morrer a trabalhar

Antes das questões salariais, de horários de trabalho longos, de maior ou menor precariedade, estão as vidas de quem trabalha: os cadáveres não têm salários em atraso.

O dia 28 de Abril é comemorado em todo o mundo desde 1996 como Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho. A Organização Internacional do Trabalho assume-o desde 2003, tendo como objetivo homenagear as vítimas dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais. Em Portugal, este dia foi instituído como Dia Nacional da Prevenção e Segurança no Trabalho, através da Resolução da Assembleia da República n.º 44/2001, de 7 de Junho.

Deste modo, assinalar este dia é sempre uma oportunidade. Oportunidade para relembrar todos aqueles que um dia se levantaram do seu leito, se despediram dos seus entes queridos — mulher, marido, companheira(o), filhos, mãe, pai, avós —, para mais um dia de trabalho e que já não regressaram a casa, simplesmente, porque morreram a trabalhar. Ou então porque ficaram tetraplégicos, sem um braço, uma perna, uma mão, um dedo… Estropiados para toda a vida.

Oportunidade para relembrar todos aqueles que um dia receberam a notícia de lhes ter sido diagnosticado um cancro, simplesmente porque estiveram anos a fio expostos, nos seus locais de trabalho, a substâncias químicas que os condenaram a uma morte antecipada. E, pasme-se, na esmagadora maioria das vezes sem nunca terem suspeitado da relação da sua doença com o seu trabalho. Morrem sem nunca o saberem.

São pessoas que morrem por acidente de trabalho ou doença profissional. Sim, pode ser o caro leitor que está a ler este artigo, pode ser qualquer um de nós. Não é ficção. É a mais pura realidade.

Não existem auroras de modernidade sem pessoas. Logo, não existem auroras de modernidade sem locais de trabalho seguros e dignos. Antes, muito antes, das questões salariais, de horários de trabalho longos, de descriminações, de maior ou menor precariedade, estão as vidas de quem trabalha: os cadáveres não têm salários em atraso.

O que ocorreu em Lamego no dia 4 de Abril, com a morte de oito seres humanos num mesmo local de trabalho, foi um acontecimento que ilustra o muito que ainda tem de ser feito em Portugal neste domínio. Não obstante os progressos que têm sido feitos nos últimos 20 anos, ainda se morre muito em Portugal a trabalhar. Na realidade, subsistem ainda locais de trabalho que não deveriam sequer existir.

Acontece que, no seguimento da Estratégia Europeia, o país tem uma Estratégia Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho 2015-2020, cujo objetivo central é a redução dos acidentes de trabalho em 30% até 2020. Todavia, este desiderato só será atingido se sobrevir um sobressalto coletivo na sociedade portuguesa. Esse sobressalto coletivo implica, entre outras medidas, a inserção das matérias de segurança e saúde no trabalho nos ensinos básico, secundário e superior. Implica também uma ação nacional que envolva decididamente os órgãos de comunicação social, designadamente, as televisões.

Além da dimensão da dignidade da vida humana, por cada morto ou incapacitado no trabalho que acontece é uma mancha de pobreza que inexoravelmente se alastra em toda a sociedade — menos um salário em casa, dificuldades no pagamento das despesas correntes, filhos que têm de sair da escola e que são obrigados a trabalhar, etc., etc.

Por outro lado, a consolidação de locais de trabalho dignos e seguros constitui também um poderoso fator de competitividade das entidades empregadoras. Ao invés, um acidente de trabalho é um custo colossal acrescido para aquelas entidades. Basta fazer umas singelas contas de aritmética.

A preservação de vidas humanas é pois o maior fator de desenvolvimento social e económico e o mais profundo sinal de uma civilização moderna e com futuro. Por conseguinte, a preservação das vidas dos trabalhadores nos locais de trabalho é uma urgência de hoje e um imperativo civilizacional.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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