Até onde vai a impunidade dos capacetes azuis acusados de crimes sexuais?

Investigação da Associated Press, centrada numa rede de exploração sexual criada por tropas cingalesas em missão no Haiti, diz que continua impune o antigo secretário-geral da ONU descreveu como "um cancro no sistema" da organização.

Foto
Devastado pela turbulência política e por desastres naturais, como o sismo que vitimou 250 mil pessoas em 2010, o Haiti acolhe actualmente uma missão da ONU formada por 5 mil pessoas ALLISON SHELLEY

A pobreza era total e a comida praticamente inexistente para o grupo de crianças que viviam num antigo resort de luxo, onde há 30 anos Mick Jagger ou Jackie Onassis apanhavam sol junto à piscina, mas agora abandonado e reclamado pela selva. Sobreviviam do pouco dinheiro acumulado a pedir nas ruas e dos pedaços de comida que recuperavam dos caixotes de lixo. Até que um contingente de capacetes azuis se mudou para as proximidades. Traziam com eles alimentos e ofereciam-nos às crianças. Muitos, porém, não a ofereciam de forma gratuita. Mais de uma centena de capacetes azuis formaram uma rede de exploração sexual que se prolongou por, pelo menos, três anos.

No início de 2016 correu mundo o escândalo que envolveu os capacetes azuis da ONU enviados para a República Centro-Africana, acusados de terem pago para ter sexo com crianças de 13 anos de um campo de refugiados. A notícia voltou a trazer à tona uma questão que o então secretário-geral da ONU, Ban-Ki Moon, classificou como “um cancro no sistema” da organização, a dos casos de violência sexual exercida por tropas de pacificação no exercício das suas funções.

Uma investigação publicada esta quarta-feira pela Associated Press é reveladora da vastidão do problema e da impunidade de que gozam os capacetes azuis acusados de tais práticas.

O cenário é agora o Haiti onde, entre 2004 e 2016, foram registadas 150 suspeitas de abuso e exploração sexual. Consequências? Dada a protecção conferida às tropas perante a justiça do país onde estão estacionadas e a pouca vontade demonstrada pelos responsáveis dos exércitos e tribunais dos países de origem em investigar e castigar os responsáveis, as consequências são praticamente inexistentes.

A rede de exploração sexual referida no primeiro parágrafo foi criada no seio do contingente cingalês estacionado no país caribenho. A investigação da AP, que se deteve nas missões da ONU à volta do mundo nos últimos doze anos, regista duas mil suspeitas de exploração e abuso sexual por parte dos capacetes azuis e outro pessoal. Os acusados são de vários países - Sri Lanka, Brasil, Bangladesh, Nigéria, Jordânia, Paquistão e Uruguai – e, segundo a AP, haverá nacionais de outros países envolvidos, tendo em conta que as Nações Unidas só começaram a revelar essa informação nos seus relatórios em 2015.

Os depoimentos recolhidos revelam cenários de total degradação humana e de crime continuado. Uma rapariga haitiana conta que, entre os 12 e os 15 anos, manteve relações sexuais com cerca de 50 soldados cingaleses (um deles, comandante, "gratificou-a" com 75 cêntimos). Quando a rede formada entre os capacetes azuis do Sri-Lanka foi denunciada, a investigação da ONU levou ao seu desmantelamento. Cento e catorze foram enviados de volta para o país de origem, sem que nenhum tivesse sido preso.

Casos como este, ou de o do adolescente haitiano violado em grupo por capacetes azuis uruguaios – “foi uma brincadeira que acabou mal”, alegaram, negando as acusações de violação -, ou o da mulher violada aos 16 anos por um soldado brasileiro, que agora transporta a filha do homem que a violou sob ameaça de arma, depois de a atrair com a promessa de lhe dar um pão barrado com manteiga de amendoim, são alvo de toda a atenção de um advogado haitiano, Mario Joseph, que tenta obter compensações para as vítimas.

Joseph teve em mãos o caso de um surto de cólera mortífero (terá atingido cerca de dez mil pessoas) ligado a capacetes azuis nepaleses, e ocupa-se agora em conseguir suporte parental para mulheres haitianas que engravidaram após violadas por funcionários da ONU. “Imaginem se as Nações Unidas fossem até aos Estados Unidos e violassem crianças e espalhassem cólera? Os direitos humanos não são apenas para pessoas brancas ricas”, afirmou o advogado à AP na capital haitiana, Port-au-Prince. A missão da ONU no país envolve actualmente um contingente de cinco mil pessoas, entre tropas e outros profissionais.

Em Março, o novo secretário-geral, António Guterres anunciou uma luta sem tréguas para acabar com casos como os relatados nesta investigação. “Declaremos a uma só voz: não toleraremos que ninguém cometa ou perdoe a exploração e abuso sexual. Não deixaremos que ninguém cubra estes crimes com a bandeira da ONU”. O novo secretário-geral terá muito trabalho pela frente. A começar pela sistematização da informação recolhida nas investigações levadas a cabo pela própria organização. Num relatório de 2008 eram assinalados 19 casos só no Haiti, mas nas suas contas oficiais a ONU inscreveu apenas dois envolvendo menores no mundo inteiro.

Os números totais relatados na investigação são insuportáveis, tendo em conta a natureza e estatuto das missões dos capacetes azuis. E não batem certo. Nada bate certo.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários