Médicos vão declarar morte do polémico exame Harrison em 2019

Comissão nomeada pelo Ministério da Saúde já apresentou proposta de nova prova para substituir o exame que os médicos fazem para aceder a uma especialidade. Documento vai estar 30 dias em consulta pública.

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Alunos no final do último exame Harrison, que decorreu em Novembro passado DR

Quase 40 anos depois, o temido e polémico exame Harrison, como ficou conhecida a prova que os médicos fazem para depois entrar numa especialidade, tem o tempo de vida contado. O novo modelo de prova já está delineado e vai ser trabalhado para que em 2018 haja um primeiro teste-piloto. Porém, será apenas em 2019 que o Harrison verá o seu óbito oficialmente declarado. Por agora, a proposta da nova prova vai estar durante 30 dias em consulta pública, para que com os contributos sejam feitos os ajustes necessários, explicou ao PÚBLICO o coordenador da Comissão Nacional nomeada pelo Ministério da Saúde para a criação de uma nova prova, António Sarmento.

A comissão reuniu regularmente durante seis meses, contanto com representantes do Ministério da Saúde, da Administração Central do Sistema de Saúde, da Ordem dos Médicos, da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, pessoas ligadas ao actual exame e dos colégios da especialidade de cada uma das áreas da medicina que vão ser avaliadas com a nova prova.

“Foi um trabalho muito profundo e meditado. É de uma enorme responsabilidade mudar a prova que vai decidir se os médicos têm ou não acesso a escolher uma especialidade, porque provavelmente não haverá vagas para todos”, lembra António Sarmento, que assegura que “a mudança foi absolutamente consensual”, mesmo depois de ter sido apresentada a mais parceiros.

Quais são então as principais mudanças? Em termos formais, se a consulta pública não alterar grandemente a proposta, a prova passará a ter 150 perguntas com resposta de escolha múltipla, quando o Harrison contava com 100. A anterior prova durava 150 minutos e esta será mais longa, visto que será mais extensa. “O Harrison focava-se apenas nas áreas da medicina interna e foi um exame assente na capacidade de memorização. Cumpriu bem as suas funções, mas já estava esgotado”, reforça António Sarmento, adiantando que o novo modelo é mais focado no “raciocínio clínico que um médico recém-licenciado deverá possuir” e, por isso, “mais justo e melhor, tanto para os médicos como para os doentes”.

O médico adianta que a nova prova, caso não sofra grandes alterações no processo de consulta pública, versará sobre a área da medicina interna e da medicina geral e familiar, mas não só. Estas áreas terão o maior peso na nota, de 50%. Depois, serão também avaliados os conhecimentos na área da cirurgia geral, com um peso de 15%, e na pediatria, também com 15%. As questões relacionadas com a obstetrícia e a ginecologia valerão 10%, tal como as da psiquiatria. “As perguntas vão partir de um pequeno caso clínico e o candidato terá sempre uma escolha múltipla”, explica António Sarmento.

Mudança “radical”

Até agora, o exame tinha como bibliografia um único livro, que recebeu precisamente o nome do cardiologista Tinsley Harrison, que foi o seu primeiro editor. Com a nova prova, será “recomendada uma obra base consensualmente aceite a nível internacional para cada uma das áreas”. Mas António Sarmento sublinha que “isso não quer dizer que cada livro tenha de ser integralmente estudado”.

Os estudantes vão conhecer a matriz da prova com pelo menos 18 meses de antecedência e a matriz será a mesma durante um mínimo de três anos. Em cada um dos domínios avaliados pela prova há áreas específicas do conhecimento que serão abordadas. O coordenador dá como exemplo que dentro da medicina interna podem surgir questões de cardiologia, infecciologia ou reumatologia.

Mas, mais uma vez, os médicos não terão de saber tudo. A matriz adiantará alguns dos conteúdos abordados, como o enfarte, dentro da cardiologia. E ainda afunilará mais: se para doenças como o enfarte os médicos poderão ter como objectivo saber tudo, do mecanismo da doença à prevenção, passando pela terapêutica e pela gestão do doente, noutras pode não fazer sentido esta abrangência. António Sarmento dá como exemplo o cancro da mama, “com tratamento muito sofisticados para esta fase e em que os objectivos poderão ser apenas o diagnóstico e a prevenção”.

Para acertar agulhas, a ideia é que em 2018 os médicos façam na mesma o exame Harrison. Contudo, um grupo de voluntários fará também nesse ano uma prova experimental que pretende “avaliar a robustez e a maturidade do processo”, explica uma nota do Ministério da Saúde, que reconhece que o actual exame tem “constrangimentos” e já não corresponde às “exigências actuais”.

“Estou convencido que é uma mudança para melhor, quer para os médicos, quer para os doentes. Vai fazer com que os estudantes se preocupem com uma preparação mais global, o que vai influenciar positivamente a qualidade médica. É uma mudança radical, mas não estamos a mudar tudo de uma vez”, reforça António Sarmento, que defende a importância de — pelo menos numa primeira fase — haver o recurso a uma estrutura externa para o apoio técnico à elaboração das perguntas da prova, que trabalhe de forma profissional e consistente.

Como é nos outros países?

António Sarmento admite que gostaria de ter ido além das 150 questões, justificando que “quanto mais perguntas houver maior é o poder de discriminação da prova”. O coordenador da comissão aponta que países como os Estados Unidos ou França têm provas com mais de 300 perguntas e que em Espanha o número ultrapassa as 200. No entanto, preferiram ser prudentes. “A tendência é caminhar para lá, mas não podíamos passar do oito para o 80 de um momento para o outro. Se mudássemos muita coisa ao mesmo tempo o risco de desestabilização era muito maior. O objectivo é irmos aperfeiçoando esta prova.” Nos Estados Unidos também já há uma prova prática e presencial com casos clínicos.

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