O que pode um escritor americano contra Donald Trump?

Num momento em que a literatura aparece como grande auxiliar explicativo de Donald J. Trump e se recuperam distopias do passado para ler nelas o presente, seis romancistas americanos, críticos da actual política, tentam responder à pergunta “o que pode um escritor?”

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A comunicação social e as redes sociais recorreram à literatura para explicar o discurso de tomada de posse e as primeiras medidas do novo Presidente dos EUA arlo Allegri/REUTERS

“Os escritores americanos precisam de se lembrar de que as pessoas na América não se importam com o que os escritores pensam sobre política — isto não é França nem a República Checa”, diz Jonathan Franzen ao Ípsilon, numa semana em que muitos escritores voltaram a assumir protagonismo na oposição interna a Donald J. Trump e em que a comunicação social e as redes sociais recorreram à literatura para explicar o discurso de tomada de posse e as primeiras medidas do novo Presidente dos EUA. Autores como George Orwell, Aldous Huxley, Hannah Arendt, Sinclair Lewis ou Philip Roth têm servido de referência para falar de um presente distópico sob ameaça totalitária, com risco para muitas liberdades, entre elas a de expressão. “É possível que no nosso novo regime republicano seja montado um tal assalto à liberdade de expressão que nós, escritores, tenhamos de nos organizar em sua defesa. Mas isso parece-me improvável”, acrescentou o autor de Correcções e de Purity, romance que questiona o poder das novas tecnologias na sociedade contemporânea e o seu efeito sobre a democracia.

A dúvida de Franzen quanto à possibilidade de os escritores se organizarem não tem que ver com uma hipotética necessidade, mas com o método e os seus efeitos. “O trumpismo representa a mais livre das expressões — expressão incendiária, expressão que despreza a verdade e a civilidade. O mais triste é que, neste momento, na América, a maior parte dos esforços no sentido de censurar a livre expressão vêm da esquerda.” E explica com um exemplo: “Os recentes apelos feitos às livrarias para boicotarem todos os livros publicados pela Simon & Schuster — uma das maiores editoras do país, casa de Don DeLillo e de outros escritores de grande qualidade — porque uma chancela da S&S vai publicar um provocador de extrema-direita.” Franzen refere-se à notícia vinda a público nos últimos dias de 2016 sobre o adiantamento de 250 mil dólares da Threshold Editions a Milo Yannopoulus, apoiante de Trump, conotado com a direita nacionalista, expulso do Twitter devido a comentários considerados xenófobos e a um discurso anti-imigrantes, anti-islâmicos e anti-homossexuais para publicar o seu livro com o título Dangerous. Pouco depois, o editor de livros do Chicago Tribune anunciava que se o livro saísse o seu jornal não escreveria sobre qualquer título da S&S, e um grupo de 120 autores pedia à Simon & Shuster que reconsiderasse a decisão.

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Apoiante de Hillary Clinton, Jonathan Franzen, 57 anos, mostrou-se sempre céptico em relação a uma vitória da candidata democrata, e quando lhe perguntavam sobre as eleições, alertava para a possibilidade de um cenário de guerra civil no pós-8 de Novembro. O seu último romance saiu em 2015, o mesmo ano em que Trump anunciou a sua candidatura, e nas entrevistas a cada resposta sua parecia subjacente uma pergunta: o que pode um escritor?

Entre os autores mais consagrados, ele não era o único a manifestar a dúvida e a apontar para um cenário pouco optimista. Longe disso. Richard Ford, numa entrevista ao PÚBLICO em Abril do ano passado, dizia que ia votar Hillary Clinton, mas “apertando o nariz”, só para evitar o pior; e o pior era Trump. Agora, uma semana após a tomada de posse, diz: “O dilema de ter este homem horrível como Presidente requer — ou irá requerer — respostas extraordinárias por parte dos cidadãos. Que respostas são essas? Não sei neste momento, mas temos de manifestar, de alguma forma, a nossa cidadania”, referiu, acrescentando que os escritores devem fazer mais do que simplesmente dar voz a essa consternação ou desânimo, mas antes “fazer da consternação uma força que consiga acabar com o regime desastroso deste homem”.  

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O que pode então um escritor? Voltamos a Jonathan Franzen e ao que nos respondeu: “Os escritores precisam de reconhecer que a grande ameaça à nossa democracia não é a supressão da expressão, mas a crescente irresponsabilidade do discurso público, em particular nas redes sociais. Se temos algum trabalho a fazer, é erguermo-nos pela verdade de expressão. Se o antitrumpismo consiste em tweets, slogans simplistas, boicotes e censura de vozes dissidentes, não é melhor do que o trumpismo. Estou mais preocupado com os efeitos dos novos media do que com a Primeira Emenda. Sem o Twitter, Trump ainda estaria a viver em Nova Iorque.”

Resistência

É uma posição que contrasta com algumas manifestações públicas por parte de outros escritores, mas que no conjunto revelam a vontade de pensar um discurso. Embrionário, especulativo, perplexo, começou a ser desenhando na campanha e para já é pouco mais do que a síntese, tantas vezes ambígua, dos textos que muitos escritores foram assinando, sobretudo nas páginas de publicações como a New Yorker, a Atlantic, da Harper’s, mas também no britânico The Guardian ou em suplementos literários de jornais como o New York Times, o Boston Globe ou o Los Angeles Book Review. Nele há para já uma palavra a reter: “resistir”. Três meses depois de uma vitória que muitos escritores tentaram evitar durante a campanha, usando as redes sociais, as páginas dos jornais, pondo o seu nome em abaixo-assinados, criando movimentos como o Writers Resist, apoiado pelo PEN America, com a intenção de defender a Primeira Emenda da Constituição americana, aquela que se refere às liberdades de expressão, a palavra mais dita continua a ser essa. Ela está subjacente ao título de um volume de ensaios lançado a 19 de Janeiro, véspera da tomada de posse. What We Do Now, Standing up for Your Values in Trump’s America, editado pela Melville House, reúne 27 ensaios de autores ligados a movimentos progressistas: Bernie Sanders, Paul Krugman, Gloria Steinmen, Elizabeth Warren, mas também escritores como Dave Eggers ou George Saunders.

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Mario Anzuoni/REUTERS

Outra palavra é “protestar”. “Não marchei”, ironiza Richard Ford. E justifica: “Acho que as maneiras tradicionais de protesto (marchas e outros actos simbólicos), na sua maioria, não têm efeito no actual contexto.” Que outras terão? É a tal pergunta sem resposta. “Está ainda tudo por vir”, acrescenta, referindo-se aos tempos de governação e de protesto. “Só espero que, qualquer que seja a forma desse protesto, ele resulte”, afirma o escritor de 72 anos, autor de O Dia da Independência ou Canadá.

O tom de Ford é de grande desânimo. O de Richard Russo não é menos. “Como a maioria dos meus amigos escritores, estou a tentar perceber tudo isto. Quais são as minhas obrigações enquanto cidadão? Como escritor? Como pai e avô? E, para mim, que obrigações tenho em memória do meu pai e do meu avô? O primeiro esteve na invasão da Normandia, o segundo lutou na primeira e na segunda guerras. Ambos teriam reconhecido Donald Trump como o vigarista, mentiroso e narcisista que é.” Para o escritor de 67 anos, autor de O Declínio de Whiting (Civilização), não há muitas dúvidas sobre o “dever de resistir a tal homem”, mas como? “O que poderá ter verdadeiramente efeito?” Tanto Ford como Russo parecem estar a pensar alto enquanto avançam nas reflexões. Ford chega a uma primeira conclusão. A de que combater “o drama público de Donald Trump” passa por tentar antecipar e perceber a longevidade das suas medidas políticas. E também, arrisca, “antecipar o que parece inevitável, e talvez súbito: o fim da sua presidência. Muitas pessoas que conheço dizem que ele não fica quatro anos no gabinete, e especula-se quanto ao que poderá gerar esse fim antecipado”.

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Ricardo DeAratanha/Los Angeles Times/Getty Images

Rachel Kushner, 49 anos, autora de Os Lança-Chamas e Telex de Cuba (Relógio d’Água), apoiou Bernie Sanders e, quando o senador do Vermont foi afastado da corrida a favor de Hillary Clinton, fez como Richard Ford: apertou o nariz e votou na ex-secretária de Estado de Obama. “A eleição e a vitória-surpresa de Trump mostraram que o país está totalmente dividido.” Passada a fase da eleição, o seu discurso endurece. O papel do escritor, segundo ela, é esse, o de apontar incómodos. “Como a maior parte das pessoas sensatas, odeio Donald Trump e tenho medo do futuro, e mesmo do presente, dado que muitos amigos meus e alguns familiares temem pela sua segurança e capacidade de viajarem livremente dentro e fora dos Estados Unidos em consequência da ordem idiota e odiosa de Trump”, mas sublinha a necessidade de “criticar e reconhecer as forças subjacentes à desestabilização global que levou à crise dos refugiados”. E faz uma pergunta: “Porque é que ninguém protestou contra o facto de Obama ter deportado 2,5 milhões de pessoas?” É a interrogação para causar o tal incómodo. “Claro que Trump é significativamente pior do que Hillary Clinton ou Obama. Mas Trump é ridículo, vulgar, estúpido, feio, não alfabetizado. Por outras palavras, é completamente seguro para a maioria das pessoas educadas de classe média se oporem a ele.”

Acção

Dito isto, “interessa-me a acção directa”, afirma.

É dia 30 de manhã, segunda-feira. Na noite anterior, lembra que em Los Angeles, onde vive, as pessoas bloquearam a estrada para ninguém chegar ao aeroporto, em protesto, “mas não é preciso ser um escritor para bloquear uma estrada”, salienta, antes de acrescentar que não sabe o que um escritor pode fazer. “Qualquer pessoa que lê o que escrevo provavelmente não votou Trump. Útil agora seria ser advogada. Como não sou, tento fazer doações a organizações que podem realmente ajudar com assistência jurídica.” É o dever de cidadania de que fala também Richard Russo ao convocar o riso. “Algumas coisas parecem óbvias. Os vigaristas não gostam de ter as suas trapaças expostas, então é expô-las até que se torne claro, mesmo para seus seguidores raivosos, que o rei vai nu. Os mentirosos odeiam a verdade, então que se conte. E os narcisistas odeiam rir, então riam-se deles. Mark Twain estava certo: ‘Contra o assalto do riso ninguém pode resistir.’ Num tempo como este, aqueles de nós que têm voz devem usá-la para ajudar os que não têm. Em Portland, no Maine, onde moro, há uma comunidade de imigrantes relativamente grande, muitos deles muçulmanos, que precisam de saber que não são vistos como amigos por este homem.”

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Como Rachel Kushner, também Donald Ray Pollock, autor de Sempre o Diabo (Quetzal), teria votado Bernie Sanders. Votou na candidata democrata antes de sair para promover The Heavenly Table. A 8 de Novembro estava na Alemanha. “Por esses dias, a pergunta que mais me fizeram foi o que achava da eleição de Trump”, refere o escritor de 63 anos, que chama “surreal” ao presente americano, “surreal como o surreal em George Orwell”, precisa. “Claro que os políticos sempre mentiram, mas nenhum tão descaradamente como Trump e a sua equipa. É difícil imaginá-lo quatro anos sem um impeachment, mas quem sabe? O maior desafio é ter certeza de que a notícia verdadeira domina a notícia falsa. E factos alternativos são mentiras. Um idiota deve saber disso.” Pollock diz-se “pessimista demais” para pensar que os escritores possam mudar as coisas, que as pessoas possam mudar as coisas. “Kanye West mencionou que poderia concorrer à presidência em 2020, e muitas pessoas riram, mas qualquer coisa, não importa o quão ridícula, poderia acontecer. Com Trump já vimos isso. Ele é o resultado do capitalismo desenfreado, da obsessão com as redes sociais e a celebridade.”

David Vann, 50 anos, autor de A Ilha de Sukkwan (Relógio d’Água), está não só pessimista como zangado, uma zanga antiga que se reacendeu. “Deixei a América em 2003 por causa de [George W.] Bush. Ficar e pensar que posso fazer a diferença é tão absurdo quanto as coisas que Trump diz. Não acho que escritores possam fazer alguma coisa acerca de Trump. Já assinámos várias declarações públicas contra ele antes da eleição, e podemos ridicularizá-lo agora e escrever sobre ele direta ou obliquamente, e por certo que a sua presidência é a mais perigosa e absurda na história de nossa nação. Mas seus partidários não se importam com factos ou argumentos, e nem ele. O melhor que podemos fazer é começar um impeachment, mas isso leva tempo, e mesmo se tiver êxito, Mike Pence, que iria substituí-lo, é provavelmente pior.” A tarefa, afirma David Vann, “é perceber a enorme revolução que pode ser causada pela destruição dos direitos civis, das protecções ambientais, da diplomacia razoável, da regulamentação bancária e corporativa, e muitas instituições que consideramos importantes”, e perceber uma coisa: “Trump foi desejado por dezenas de milhões de americanos e ele é quem eles são. Quando ouvimos Trump dizer coisas ridículas e feias, ele realmente está a falar por eles, os eleitores antiaborto, os que têm armas, todos os racistas e isolacionistas e os brancos pobres perdidos numa fantasia sobre si mesmos que pensam que um multimilionário vai ajudá-los.”

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