Razão e emoção democráticas

Francisco Louçã esse empedernido clérigo do trotskismo luso subitamente transformado em suposta consciência bem pensante da presente situação exemplifica na perfeição essa atitude arrogante, pretensiosa e sectária.

1. Martha Nussbaum, professora de Filosofia na Universidade de Chicago e figura maior do actual pensamento norte-americano é autora de um livro intitulado Not for Profit: Why Democracy Needs Humanities que merece ser lido na conjuntura presente. A sua tese é clara: a desvalorização do ensino das Artes e das Humanidades, que se tem vindo a verificar em quase todos os países, prejudica o surgimento de um conjunto de emoções democráticas imprescindíveis à formação de cidadãos dotados de sentido crítico e de abertura para a compreensão dos outros. O que há de singular nesta perspectiva é o facto de ela não associar linearmente a democracia com a razão, nem as manifestações anti-democráticas que por aí pululam com o triunfo de um excesso emocional. Isto é, a democracia assenta simultaneamente num ethos e num pathos.

Neste ponto plenamente fiel à sua filiação aristotélica, Martha Nussbaum atribui às emoções uma verdadeira competência cognitiva; elas ajudam a interpretar e a compreender o mundo. Mas para que tal aconteça é necessário um modelo de ensino que, não desvalorizando a transmissão dos conhecimentos no âmbito das chamadas “ciências duras”, se preocupe igualmente com as Artes e as Humanidades. Só desta forma os indivíduos se poderão afirmar como cidadãos dotados de capacidade de reflexão crítica e em simultâneo do sentimento de empatia imprescindível para a compreensão e a identificação com os outros. Esta posição parte do pressuposto antropológico da extrema vulnerabilidade do ser humano, que tanto pode dar azo à agressividade como à compaixão. Infelizmente, nos tempos que correm assiste-se a uma desvalorização do ensino das Artes e das Humanidades em nome da formação de “máquinas eficazes”, isto é, de indivíduos sem densidade e desprovidos da necessária projecção no espaço e no tempo. O sucesso de Donald Trump reflete em muito esta insuficiência na formação das tais “emoções democráticas”. Trump, na sua grosseria absoluta, é a expressão máxima dessa ausência: o que é ele senão o mestre supremo de um bullying arrasador, em permanente actuação num espaço comunicacional incapaz de lhe oferecer as devidas resistências? Na sua desmesura circense, Trump representa exemplarmente o que de pior existe nas nossas democracias actuais: o triunfo da vulgaridade boçal, o imperialismo do imediatismo primário, a recusa da complexidade conceptual, o elogio da arrogância autoritária, a anulação do respeito pela divergência. Os seus famosos tweets são bem um símbolo dos aspectos mais negativos do nosso tempo: a desistência da argumentação e a consagração da proclamação definitiva e vazia.

Ora, o que Martha Nussbaum nos vem lembrar é que a democracia precisa simultaneamente de uma razão e de uma emoção democráticas. Na sua óptica temos que proceder a uma revalorização de dimensões fundamentais da nossa herança cultural que nos ajudem a agir de modo mais exigente no espaço público. Isso não significa nem uma desvalorização do conhecimento mais directamente associado à componente técnica, nem uma despreocupação com a necessidade de ter em conta as exigências do mercado de trabalho. Estas diversas preocupações não só não são incompatíveis como até se complementam. Nussbaum não ignora que a própria dimensão estritamente económica beneficia com a existência de cidadãos dotados de sentido crítico, embora deixe claro que na sua hierarquia privilegia os critérios associados à política democrática face às considerações de ordem puramente económica. Eis uma autora que deve ser lida e seguida com extrema atenção.

2. Infelizmente, há uma certa esquerda que em matéria de bullying ideológico e político também não gosta de deixar os seus créditos por mãos alheias. Francisco Louçã esse empedernido clérigo do trotskismo luso subitamente transformado em suposta consciência bem pensante da presente situação  exemplifica na perfeição essa atitude arrogante, pretensiosa e sectária. O método é sempre o mesmo: em lugar de discutir argumentos procura-se desqualificar intelectual e moralmente o adversário, caricaturando o seu ponto de vista. Foi precisamente isso o que Louçã fez em relação ao artigo que aqui publiquei há quinze dias atrás. Ao agir dessa forma, Francisco Louçã faz uma opção clara pelo campo da desonestidade política. Por vezes a caricatura está para o humor como a esperteza saloia está para a inteligência. É pena que Louçã desça a tal nível. É pena, mas é verdade.

3. Numa altura em que alguns sectores do meu próprio partido se empenharam em atacar-me despudoradamente na comunicação social e sobretudo nas redes sociais (hoje em dia o seu habitat natural), três personalidades de primeira grandeza da vida cívica nacional e militantes do Partido Socialista vieram a público defender a minha liberdade de expressão. Manuel Alegre, João Cravinho e Vera Jardim, fiéis aos seus compromissos de sempre, não terão feito mais do que cumprir a sua obrigação. Só que cumprir a obrigação nos tempos que correm já é um feito assinalável. Não fiquei surpreendido, mas confesso que fiquei muito agradado. Independentemente do seu posicionamento, os homens livres, que sabem ser convictos sem nunca descerem ao sectarismo e que são levados pela própria inteligência a cultivar o respeito por quem deles discorda, constituem os verdadeiros esteios de uma democracia. Voltando a Martha Nussbaum, é caso para dizer que a democracia precisa da combinação entre um ethos e um pathos democráticos. Há homens e mulheres que pelas suas vidas e pelas suas intervenções representam exemplarmente essa simbiose. É o caso das três personalidades atrás referidas, e, felizmente, de algumas mais que subsistem na vida política portuguesa.

4. Durante largos meses debati na televisão com Nuno Morais Sarmento e Paulo Rangel. As nossas divergências são conhecidas. As nossas convergências também. De umas e de outras se faz o debate democrático. Agradeço-lhes publicamente as considerações proferidas numa altura em que estava ser soezmente atacado pela simples razão de ter exprimido o meu ponto de vista acerca da presente conjuntura política nacional.

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