Entre celebração e protesto, a América une-se à volta de Donald Trump

A América dividida está unida por um fim-de-semana em Washington. Parte celebra e a outra protesta. No meio, está o novo Presidente, o único na história dos EUA que viu descer a popularidade entre a eleição e a tomada de posse. O que irá acontecer esta sexta-feira só se pode contar mais tarde.

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A cerimónia de tomada de posse realiza-se à frente do edifício do Capitólio Brian Snyder/Reuters

Um homem apaga o cigarro e levanta-se do banco de madeira junto à estação de metro de Penn Quarter, cruzamento da Sétima Rua com a Pennsylvania Avenue. Aquele é o lugar mais movimentado ao fim da manhã de quarta-feira nos mais de dois quilómetros que vão desde o chamado triângulo federal, onde se situa a Casa Branca, e o Capitólio. É um imenso cenário vazio onde cada passo, cada som, é notado. Não é um dia normal. São vésperas da tomada de posse de Donald J. Trump, 70 anos, empresário, bilionário, celebridade sem currículo político, como 45.º Presidente dos Estados Unidos.

O ambiente é o da montagem de um cenário gigantesco, pensado com toda a pompa, mas ainda vazio de protagonistas ou figurantes, plateia sem espectadores, sol a prolongar sombras e o eco de martelos, gruas, camiões de material técnico, arrastar de grades no asfalto e as pás de um ou outro helicóptero em voo mais baixo.

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Alguém do protocolo sai da vedação de segurança para um depoimento solene ao microfone de uma televisão. “Quando o senhor Trump disse que o que importa não é o que a América pode fazer pelos americanos, mas o que os americanos podem fazer pela América, deu um sinal. Ele estava a fazer suas as palavras de John F. Kennedy e a querer dar um sinal de união à América. É isso que se pretende que esta festa seja, a da celebração de um país.” Referia-se à célebre frase: “Não perguntem o que a América pode fazer por vós, mas o que vós podeis fazer pela América.” E o canal de televisão americano gravou sem que ninguém se pudesse aproximar muito e o funcionário do protocolo regressou ao interior da vedação onde em dias normais multidões se juntam para ver e fotografar e protestar. É a entrada da Casa Branca.

Não se vê agora. Muito menos do local onde está o homem que fumava e que caminha agora pela enorme recta, alameda branca que esta sexta-feira irá acolher o desfile depois de o novo Presidente jurar, mão sobre a Bíblia, respeitar a Constituição americana. O homem chama-se Semer e estacionou o táxi ali perto para o que ele chama de “despedida”.

“A partir de agora tudo será diferente e quem elegeu Trump terá de assumir essa responsabilidade.” Faz uma pausa. “Afinal somos uma democracia e democraticamente foi eleito um palhaço.” O tom da voz de Semer é calmo e só se altera quando se pergunta se irá assistir. “Está a brincar comigo!? Pode contar pelos dedos as pessoas de DC que vão à tomada de posse. Aqui, 97% das pessoas votaram em Hillary Clinton. Está toda a gente muito zangada.”

Uma cidade sem festa

Não foi 97, mas 90,5 a percentagem de eleitores de Washington DC que votaram na candidata democrata nas eleições de 8 de Novembro. Isso pode explicar em parte a razão pela qual, apesar do palco montado, das bandeiras que o enfeitam, das centenas de câmaras de televisão em sítios estratégicos ou das bancadas que brilham ao sol, não se sentir uma cidade em festa.

Semer é da Etiópia. Chegou aos Estados Unidos em 1980 e foi viver para a capital, onde se juntou à maior comunidade etíope fora daquele país. Semer vive em Silver Spring, cidade a meia hora de metro da baixa de Washington, já no estado vizinho do Maryland, onde, como na capital, as ruas são uma babel de sons. Está, no entanto, recenseado na capital federal. É lá que vota. “Sou cidadão americano, voto sempre, já perdi, já ganhei, mas nunca senti esta angústia”, diz, num inglês correcto, com ligeiro sotaque, enquanto traça um retrato da política do país, das vantagens do Obamacare para a classe média baixa “que agora votou Trump”, da “liberdade de se ser diferente”, do “crescimento económico”, e sintetiza o perfil dos apoiantes de Trump que tem transportado no seu táxi. “São quase todos de fora e não falam muito de política. Não sei se têm vergonha...” Semer vai embora sem olhar para trás depois de apostar mais uma vez que não vai ser fácil encontrar apoiantes de Trump “desta terra”.

A cidade preparou-se para receber entre 800 mil a 900 mil pessoas neste fim-de-semana. Em 2009, quando Barack Obama tomou posse, foram quase dois milhões. Mas agora nem todos chegam para celebrar. A agenda de Washington está repleta por estes dias com uma programação para todos os tipos de público que fez esgotar hotéis e triplicar ou quadruplicar os preços. A média por noite para um três estrelas é entre 350 a 450 dólares, dependendo da localização. Há a tomada de posse, mas há quase três dezenas de manifestações ou acções de protesto. Ou seja, a América dividida, diversa, irá reunir-se no mesmo fim-de-semana em DC, dirá “presente”, seja nos protestos, com destaque para a Marcha das Mulheres agendada para sábado e onde se esperam mais de 200 mil participantes, como na celebração do seu novo Presidente, um dos menos populares da História e o único que viu a sua popularidade diminuir desde a eleição até hoje, dia em que toma posse.

Segundo uma sondagem do Washington Post/ABC, CNN/ORC e NBC/Wall Street Journal, quatro em cada dez americanos apoiam Trump. O apoio a Obama foi de 79% e a George W. Bush de 48%. Ou seja, há muito tempo que os níveis de entusiasmo não andavam tão baixos quando associados a um novo Presidente, que, quando anunciou a sua candidatura, em 2015, foi entendido como “uma piada”, mesmo — ou sobretudo — “pelos jornalistas”, como referiu ao PÚBLICO Gene Policinski. Este antigo jornalista é um dos directores do Newseum, museu que se dedica à promoção das cinco liberdades contidas na primeira emenda da Constituição: expressão, religião, imprensa, reunião e petição.

À porta do edifício na Pennsylvania Avenue estão expostas as primeiras páginas de jornais de cada um dos estados americanos. Em todas está o fim-de-semana da tomada de posse, mas os protagonistas diferem: Trump, Obama, ou as mulheres a tricotar pussy hats, o símbolo do protesto deste sábado. Policinski desdramatiza o que se chama “falta de entusiasmo”, afirmando que não vê diferenças entre o modo como os media estão a cobrir este acontecimento dos anteriores. “O que muda são as circunstâncias e essas nunca são iguais. Estas são inéditas.”

Os sinais dessa originalidade são visíveis em coisas tão simples como o merchandising à volta do novo Presidente. Feito à medida de apoiantes e opositores. O slogan “Make America Great Again” dá para todas as interpretações e recriações. E a imagem do homem também.

Justamente à porta do Newseum, Jonathan sorri para uma câmara. Duas mulheres pedem-lhe que exiba o copo que tem nas mãos. É uma piada ao cabelo do futuro Presidente. Veio do Kentucky numa visita de estudo. Vai ao museu. “Estou muito curioso para ver o ambiente. É a primeira vez que estou em Washington e ver uma tomada de posse é uma coisa histórica”, diz.

Tem 16 anos, não vota e prefere não falar de Trump. As duas mulheres agradecem e afastam-se. São também agora dois vultos na avenida. Vêem-se ao fundo a lançar uma moeda na mão de um sem-abrigo. É o único que deixou os parques e se instalou no meio daquele cenário em construção. Abana a caixa e o chocalhar metálico mistura-se com um cântico, ao longe. Não se percebe de onde vem. Mete conversa.

“Não me dá uns trocos?! Há um bocado um tipo de uma televisão deu-me uma nota e perguntou se eu deixava que ele contasse a minha história triste. Que vergonha! Não me vendo...” Um homem passa com um cão sem trela e um jornalista oriental faz ensaios para uma câmara. As suas sombras reflectem-se no espelho de água junto ao Capitólio. À volta, no topo dos prédios mais altos, há siglas de estações de televisão. Os estúdios estão montados nos lugares de onde se “pode ver tudo”.

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Um dia como os outros

As câmaras estão de costas para a cidade que vive mais um dia aparentemente normal. No átrio de uma escola em Georgetown, na zona mais antiga de Washington, as gargalhadas e vozes das crianças ouvem-se ao fundo da rua, junto à universidade com o mesmo nome, a Georgetown University, na Rua 37. Ali, tudo parece como antes, a não ser talvez debates mais acesos em seminários sobre direitos humanos, raça, fé, minorias. A pé, de autocarro, de metro, nos restaurantes, cafés, fora do National Mall, do triângulo federal, do Capitólio, da geografia do poder, há uma sensação de normalidade. Desce-se sem pressas a grande escadaria rolante que leva à estação de Dupont Circle, linha vermelha do metro. Não se ouve falar de política, não se vêem cartazes. Uma voz no altifalante anuncia o fecho de algumas estações nos próximos dois dias.

Em Union Station, a grande porta de entrada de Washington DC, entra um grupo de rapazes. São quatro, falam de uma exposição de arte, riem. As suas vozes são quase as únicas numa carruagem cheia, mas silenciosa, onde muitos passageiros seguem de jornal aberto. Eles levam nas mãos cartazes enrolados. Num pode ler-se “Climate Change”, letras verdes em fundo branco. Ninguém comenta.

“Vai haver um protesto?”, pergunta-se. “Sim, junto ao Capitólio”, responde um deles, e acrescenta: “Mas nós estamos a trabalhar, vamos agora entregar estes cartazes. Estivemos a fazê-los.” Saem na estação próxima da Casa Branca e também se perdem na cidade mais quente do que é costume para esta época do ano. Há uma semana estavam temperaturas negativas. Agora estão 13 graus e há gente de calções e t-shirt nas ruas.

Anthony tem o casaco à cintura e uma camisola de algodão. Vai à frente de um grupo de umas dez ou 12 pessoas, e leva uma bandeira com as cores do movimento LGBT. Caminham em silêncio. Para onde? “Hoje há um protesto, um baile junto à casa onde o vice-presidente eleito vai dar um jantar. Nós vamos agora juntar-nos e preparar esse baile”, afirma. Anthony refere-se ao jantar que Mike Pence deu na noite de dia 18 em honra dos doadores da campanha e para o qual Donald Trump também foi convidado.

É só um dos bailes alternativos aos bailes oficiais que irão juntar 32 mil pessoas no National Convention Center na noite desta sexta-feira. Quando o casal presidencial iniciar a dança inaugural, parte da América estará a dançar ao som de outras músicas e essa dissintonia ficará para a História.

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